Inteligência artificial aplicada no combate à corrupção

Como Bourdieu, aprendizado de máquina e políticas públicas se relacionam na democracia moderna

Juliano garcia de oliveira
Data Hackers
10 min readAug 11, 2019

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DISCLAIMER: Este artigo opinativo toca apenas em alguns aspectos que eu considero importantes para compreender a situação. Nada é verdade sobre pedra, o intuito é trazer a discussão para a comunidade e não ditar regras inquestionáveis sobre a situação ;)

Panorama

O modelo político que as democracias adotam passou por significantes mudanças recentemente com o advento das novas tecnologias, principalmente as TICs: Tecnologias da Informação e Comunicação. Embora o nível de adoção dessas tecnologias na área política e gestão pública sejam mais lentas e burocráticas se comparadas com a iniciativa privada, mundialmente há vários incentivos e projetos em desenvolvimento, tais como o desenvolvimento em cidades inteligentes, que engloba a melhoria da gestão pública e da qualidade de vida dos cidadãos através da utilização de uma infraestrutura de alta tecnologia para aperfeiçoamento dos serviços e integração das diversas áreas em uma cidade, por exemplo.

No entanto, um dos problemas que persistem sempre que há um debate sobre política e gestão pública é a corrupção. Internacionalmente, é comum utilizar como indicador o IPC, Índice de Percepção da Corrupção, relatório anual publicado pela Transparência Internacional. Por exemplo, no IPC de 2016, o Brasil está em 79˚ (quanto menor a posição, menor a percepção da corrupção no país), atrás de países como Senegal, Tunísia, Arábia Saudita e Turquia.

IPC 2016

A aplicação de novas tecnologias para o combate à corrupção é mais difusa e não tão explícita quanto outras áreas, mas há interessantes iniciativas e aplicações na área. No caso específico do Brasil (há iniciativas similares em outros países), fatores importantíssimos neste quesito são a Lei da Transparência (LC 131/2009) e a Lei de Acesso à Informação (n˚ 12.527/2011). A primeira estabelece que os órgãos públicos devem divulgar a receita e a despesas da entidade, em uma página na internet, com o prazo máximo de 24h. A lei também estabelece exigências técnicas que permitam a fiscalização e auditoria das informações perante o ministério público. Já a Lei de Acesso à Informação estabelece a relação de acesso a várias informações públicas, pelo cidadão comum. Permitindo com que qualquer pessoa possa solicitar documentos a algum órgão público sem nenhuma justificativa necessária. Essa lei também estabelece o mínimo de conteúdo obrigatório disponibilizado e exigido no site do órgão público, determinados pela CGU (Controladoria Geral da União).Porém, ainda há pouca aplicação tecnológica em cima destes dados.

Com base em uma análise da corrupção na sociedade como um todo, utilizando métodos computacionais avançados que deram bons resultados em outras áreas, pode-se melhorar e combater a corrupção, principalmente através de análise de grandes volumes de dados que são gerados, por exemplo, pela Lei da Transparência no Brasil.

O enfoque tecnológico para esse combate está na utilização de aprendizado de máquina (machine learning), uma subárea de Inteligência Artificial. Na área de aprendizado de máquina, utiliza-se técnicas avançadas de estatísticas e modelos computacionais sofisticados para análises preditivas, classificação, etc., em grandes volumes de dados.

Entendendo o problema

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Antes de aplicar efetivamente uma tecnologia, é preciso analisar as origens e modos de como compreender o problema. No âmbito da gestão pública e da política, corrupção e fraudes são os problemas em foco. Para analisar a corrupção, o que se espera, em última instância, é obter um modelo sociológico causal para a corrupção.

Na sociologia, algumas teorias não englobam os fenômenos sociais como determinantes na corrupção, enquanto outras atribuem à aspectos intrínsecos para os fenômenos sociais. O primeiro tipo abstrai a importância dos fenômenos sociais: a causalidade é independente da estrutura social. O segundo, leva à uma naturalização do que é socialmente construído, também dificultando a análise e distinção entre as causas da corrupção.

Pierre Bourdieu, sociólogo francês

Pierre Bourdieu, importante sociólogo francês, fornece uma alternativa para compreender o fenômeno. Ao invés de considerar fatores isolados e específicos com fatores causais da corrupção, a teoria de ação social de Bourdieu fornece uma alternativa contextual para as causas da corrupção, pois integrando uma gama de fatores (macro e micro), se torna um bom modelo teórico para compreensão da corrupção.

Ao invés de focar na estrutura ou no agente, objetivismo versus subjetivismo, Bourdieu descarta essa dualidade que vê como falsas antinomias, ligando as posições estruturalistas e construtivistas através de uma praxeologia social. Na teoria de Bourdieu, o que predomina é uma perspectiva relacional: uma concepção/esquema mental é a personificação das divisões sociais. O conceito de habitus é justamente a relação de mediação entre a estrutura social (macro) e a ação individual (micro).

Em auxílio ao conceito de habitus, Bourdieu também considera a disposição, que é o conjunto momentâneo e local que influencia nas atitudes de um agente. Segundo o sociólogo, as ações são dependentes da estrutura/modelo mental de um determinado momento, que por sua vez, é decorrente da estrutura social na qual o agente está inserido.

Analisando o problema da corrupção na visão de Bourdieu, temos a seguinte cadeia causal: uma pessoa, imersa em um certo habitus, e possuindo algumas certas disposições e predisposições, “entra” para a corrupção como resultado desses fatores.

Teoria da ação social — Bourdieu

Na teoria de ação social, o nível de análise de corrupção se dá no indivíduo. Para tanto, como estes estão “imersos” em um habitus, que faz a ligação entre o macro e o micro, convém analisar a visão de Bourdieu entre essa ligação. Bourdieu propõe que as divisões sociais e o esquema mental (indivíduo) são estruturalmente homólogos porque estão geralmente relacionados profundamente por uma relação determinística. O esquema mental é apenas uma personificação da divisão social. Uma exposição e contato contínuo com certa condição social faz com que o indivíduo internalize características e aspectos do mundo externo.

Portanto, não basta analisar a corrupção em si, ou como ela funciona, mas também os processos de internalização das atitudes corruptas, como os esquemas mentais dos agentes que praticam a corrupção foi formada. Na teoria de ação social, Bourdieu propõe que há estímulos na disposição, que podem facilitar ou diminuir a chance de o indivíduo agir de determinada forma. No caso específico da corrupção e da aplicação tecnológica, o ideal é encontrar estímulos que diminuem a chance de ações consideradas como corrupção. é óbvio que considerando esse modelo teórico, a mudança na estrutura social, e a consequente internalização de novos aspectos sociais que minimizem a corrupção seria o ideal. Porém este é um desafio ainda maior, e não é o foco quando se fala de medidas tecnológicas.

Competitividade e aprendizado de máquina

Competition has been shown to be useful up to a certain point and no further, but cooperation, which is the thing we must strive for today, begins where competition leaves off. — Franklin D. Roosevelt

Um possível estímulo a ser analisado e combatido são as transações fraudulentas, comumente materializadas no abuso de verba pública e superfaturamento de licitações. Outro estímulo a ser considerado seria uma fiscalização rápida e eficiente, através de técnicas de aprendizado de máquina, por exemplo. Espera-se que isto minimize a chance de um indivíduo cometer uma ‘ação corrupta’, a partir do momento que o indivíduo tem noção que está sendo vigiado pela própria população, e todas suas transações enquanto agente do poder público está sendo processada e analisada utilizando técnicas avançadas de computação (e não apenas pelo ministério público e sua extensa burocracia, no caso do Brasil).

A questão dos estímulos pode ser também comparada com alguns conceitos da visão liberal, cuja teoria enuncia que quanto maior a liberdade econômica e competitividade entre as empresas, menor a chance de se cometer atos corruptos (na empresa), porque menos vantajosa ela se torna à medida que a competitividade cresce. O paralelo na política e na gestão pública é o sistema de freios e contrapesos de Montesquieu, onde cada um dos poderes da república se fiscaliza mutuamente e interferem entre si, sendo uma espécie de ‘competição’ na esfera do poder público (em teoria…).

A performance e rapidez em um sistema que permitisse classificar e analisar transações do poder público é um diferencial imenso, se comparado ao tempo dos trâmites dos ofícios nos ministérios públicos. Estes fatores, performance e rapidez, dependem do estado atual da tecnologia e desenvolvimento científico. Aprendizado de máquina e processamento de grandes quantidades de dados permitem criar sistemas com ambas características, se revelando como uma das principais alternativas para tentar solucionar esse problema.

Historicamente, a detecção de fraudes em transações, principalmente utilizando inteligência artificial, se baseia em agentes computacionais que possuem regras transacionais, regras lógicas descritas explicitamente (ou por inferência lógica) que mudam de sistema para sistema. Um dos principais problemas dessa abordagem é a quantidade de falsos positivos — transações são classificadas como fraudulentas enquanto na verdade não são. Portanto, foi necessário achar uma alternativa que melhorasse esses tipos de sistema, que são vitais em bancos, mercado financeiro, medicina e em várias outras áreas.

Ao utilizar técnicas de aprendizado de máquina, as principais vantagens obtidas são: melhor velocidade, já que o processamento de grandes quantidades de dados é rápido se comparado com o modelo de regras lógicas, principalmente porque os principais modelos de aprendizado de máquina se adaptam naturalmente de acordo com os dados lidos; melhor escalabilidade, visto que quanto maior a quantidade de dados disponível, melhor é a performance dos modelos de aprendizado de máquina (na maioria dos casos), o que não ocorre com um modelo tradicional; mais eficiente, porque intrinsecamente, os modelos de aprendizado de máquina são superiores nas tarefas de classificação porque capturam a estrutura interna de um conjunto de dados melhor do que os humanos em uma série de tarefas, e isso pode ajudar a combater os falsos positivos.

Casos de sucesso

O projeto Operação Serenata de Amor

O sucesso efetivo dessa tecnologia para minimizar a corrupção, através da detecção de transações fraudulentas e análise dos dados públicos, depende de uma série de fatores, tecnológicos e sociais. Para exemplificar um caso de sucesso, e como a análise de dados e aprendizado de máquina pode ajudar, será explicado um projeto brasileiro, de software livre lançado em uma campanha de crowdfunding, chamado Operação Serenata do Amor.

Inicialmente, o foco do Serenata de Amor foi verificar a utilização da Cota para Exercício Parlamentar — CEAP. O CEAP permite um total de R$ 33.000 até R$ 45.000 para reembolso de gastos com refeições, passagens aéreas, combustível, aluguel de carro, etc. enquanto o parlamentar está em exercício de sua função. O total final depende de qual estado o parlamentar é o representante.

O fluxo de funcionamento do Serenata do Amor segue o padrão para análises estatísticas computacionais: Primeiramente, é feito scripts para obter os dados (principalmente dos sites do governo, disponibilizados pela Lei da Transparência), e tratá-los. Em seguida, classificadores treinados utilizam técnicas de aprendizado de máquina para classificar os novos dados obtidos. As transações analisadas que obtiverem resultado suspeito ao passar pelos classificadores, são então enviadas para uma análise manual. No Serenata do Amor, a inteligência artificial que classifica os dados é chamada de Rosie. Rosie também é uma conta no Twitter que sempre que encontra alguma anomalia, escreve uma mensagem na rede social marcando o político em questão (se possível) e pedindo ajuda da população para apurar determinada transação (vale a pela conferir!). O Serenata do Amor também possui um site para manter os dados das transações, que é chamado de Jarbas.

Segundo os relatórios mensais do projeto, no final de 2016 foram feitas 629 denúncias feitas para a Câmara dos Deputados, com 216 deputados diferentes denunciados, dando um total de R$ 378.000 sendo questionados. Esse é um dos projetos que mostra o potencial que a utilização de aprendizado de máquina e ciência de dados têm, e como pode ajudar na fiscalização de transações e no combate à corrupção. Vale citar que o projeto foi desenvolvido em apenas três meses, não utiliza técnicas tão avançadas e mesmo assim obtém ótimos resultados.

Tecnologia não é suficiente

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O projeto citado é evidência de que a tecnologia apresentada é uma importante ferramenta e que possui um enorme potencial. Projetos com maiores incentivos, incluindo a participação de órgãos de fiscalização do governo, apoio de empresas e da população, provavelmente ajudariam muito no combate deste tipo de corrupção.

Finalmente, deve-se também ressaltar a necessidade de uma mudança estrutural, como o modelo de Bourdieu nos ajuda a compreender. A tecnologia entra, portanto, como um meio de transição que permite modelos e sistemas mais eficazes no combate da corrupção. Porém, não é suficiente: não basta apenas melhorar a tecnologia e sua aplicação, porque as instituições determinam os rumos da tecnologia, como explica Charles Edquist. A estrutura social deve acompanhar a mudança para que os resultados sejam os melhores possíveis.

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Juliano garcia de oliveira
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{Computer | Data} Scientist. Data Scientist @ Nubank & Comp. Scientist from IME-USP. Opinions are mine only and not reflective of my employer.