Como mostramos que clínicas privadas tentam ocupar espaço do SUS nas periferias

Fred Di Giacomo
data_labe
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4 min readDec 21, 2020

Através de gráficos, dados e histórias de moradores dos subúrbios construímos uma das narrativas mais acessadas do site do data_labe em 2020

Foi a maior crise de saúde mundial do último século que me levou a trabalhar com a equipe do data_labe, um laboratório de dados e narrativas localizado na Favela da Maré (RJ). Logo eu, cria da Vila São João, em Penápolis, árida cidade-cerrado localizada a bons 600 quilômetros do mar, editando reportagens da trupe mais sagaz e talentosa da cidade maravilhosa.

Entrei no data_labe por volta de março de 2020 para ficar só três meses e somar na cobertura da epidemia de covid-19 nas periferias e favelas do Rio de Janeiro, mas o match foi tão forte e a química tão intensa que estou aqui, nove meses depois, celebrando nossa produção de final do ano, que foi diversa e potente, mas não deixou de versar muito sobre os vírus que atacam o sistema público de saúde no Brasil. E não estou falando só do corona!

O tema da reportagem “A saúde dos subúrbios: clínicas populares privadas tentam ocupar espaço do SUS nas periferias”, terceira matéria mais acessada do nosso site em 2020, surgiu em uma de nossas tradicionais (e semanais) reuniões de pauta matutinas. Acredito que ela tenha partido de uma discussão sobre o SUS, puxada pelas repórteres Elena Wesley e Gabriele Roza, ambas talentosíssimas, que compunham o time de reportagem com o oceanógrafo Breno Henrique.

“Privatização da saúde popular. Insuficiência do SUS e alternativas de atendimento de planos de saúde populares e baratos em favelas e periferias” foi o briefing com o qual saímos daquele debate.

Com a aprovação da Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos, em 2016, e a consequente precarização do SUS, geral nos subúrbios fluminenses estava apelando para clínicas particulares baratinhas quando precisava de uma consulta rápida ou de um exame pontual. A matéria era importante para mostrar “o crescimento acelerado de planos de saúde baratos e acessíveis que fortaleciam a privatização da saúde”. Nosso foco no data_ sempre é na reportagem local, por isso miramos nas moradoras e moradores do Complexo da Maré e do bairro de Bonsucesso.

Quem ficou com a tarefa de apurar essa história foi a Gabriele Roza. E diante da dificuldade de encontrar bons personagens por WhatsApp ou pelas redes sociais, Gabi botou uma boa máscara, colocou o álcool em gel na bolsa e meteu o pé na rua.

Repórter com instinto de furo, ela rodou por clínicas populares de Bonsucesso, pinçando histórias sensíveis e humanas das mulheres e homens que conheceu por lá. Somamos a isso conversas com médicos dessas clínicas populares e as análises críticas do pesquisador do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ (IESC-UFRJ) Leonardo Mattos.

Mas não queríamos só ficar na “impressão’’ dos nossos entrevistados. Não bastava para gente uma reportagem baseada em declarações, mesmo que de especialistas respeitados. Seria esse fenômeno uma tendência real? Para checar isso, nosso editor de dados Paulo Motta (que tem mestrado na área de dados e saúde) levantou o número de criação de clínicas particulares nas diferentes regiões do Rio de Janeiro desde a aprovação da PEC, sua localização e a proximidade de aparelhos públicos dessas clínicas.

Escreveu o Paulo: “Segundo os dados do CNES, os estabelecimentos privados escolhem bem onde querem se instalar: Manguinhos e Maré são territórios mais reconhecidos como favela pelo senso comum.” E onde havia favelas, não havia interesse das clínicas privadas. Seu boom aconteceu nos subúrbios, onde, supostamente, sobraria um dinheirinho para investir nos planos populares. O levantamento de dados que Paulo fez, e comprovava esse boom pós-PEC, foi trasformado em belos gráficos pelo nosso classudo designer (e artista) Nícolas Noel e eu fiquei encarregado de dar um cara final para o texto da Gabriele.

A reportagem partiu do detalhe, do micro, do humano — que eram as histórias dos frequentadores das clínicas — para o global, o macro, o dado. Esse mix de números e narrativas, gerou uma história sistêmica que foi uma das três mais acessadas do nosso site em 2020 e ainda foi republicada pelo UOL, maior portal de notícias do país.

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Fred Di Giacomo
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Escritor. Jornalista multimídia. Autor do romance “Desamparo”. Co-criei os jogos Filosofighters e Science Kombat pra Super. 7livros e 1 filho.