Entrevista// Gizele Martins

Fernanda Távora
data_labe
Published in
7 min readMay 16, 2017

Esta entrevista faz parte do primeiro episódio do podcast do data_labe, o #datalábia. Nele, discutimos a importância da comunicação comunitária para a construção de novas narrativas na/para a favela e periferia, baseados no Mapa da Comunicação Comunitária.

Para ajudar a gente nesse papo e debater essa questão, conversamos com a jornalista Gizele Martins, comunicadora da favela da Maré, do Jornal O Cidadão e da Revista Vírus, e com o idealizador da Escola de Notícias e da Historiorama, Tony Marlon, do Campo Limpo — quebrada de SP.

Agradecemos ambos por terem parado a sua correria para nos ajudar a entender um pouco desse universo.

“A comunicação comunitária é uma disputa ideológica, racial, de gênero…”

data_labe: O que é pauta para você? O que vira notícia na favela?

Gizele: O que é Pauta pra mim na favela? Pauta pra mim é a defesa do ser favelado, é pauta pra mim a questão racial, que se impõe na favela que aí a gente discute o que é favela né? Pauta pra mim na favela é discutir a nossa vida assim como ela é, sem criminalização e sem romantização da nossa realidade.

É pauta na favela a questão da moradia, que é o nosso maior problema não solucionado. O direito a moradia que nunca foi dado a essa população pobre, preta, nordestina, indígena… Nunca (…) das nossas terras dos nossos espaços. É pauta pra mim também a questão da segurança publica que, principalmente, nos últimos anos tem torturado bastante a gente, com a invasão das UPPs. É óbvio que polícia sempre esteve presente perseguindo a favela, mas nos últimos dez anos isso tem piorado bastante.

Isso pra mim é pauta na favela. A briga favelada, ela é pauta. Cultura, a educação a falta de direito a vida, a falta de qualquer tipo de direito. E a valorização desse povo, povo resistente que constrói e reconstrói a sua vida no dia a dia sem qualquer tipo de direito.

data_labe: Como funciona o processo de construção das pautas no veículo? A população se envolve?

Gizele: Sim. Como comunicadora comunitária, e eu faço isso há quinze anos, eu passei muito tempo circulando nas ruas, por exemplo, da Favela da Maré, que é a favela que eu moro. E sempre teve uma participação muito grande na construção das matérias, nas ideias, na visão política de cada matéria, na sugestão de quem entrevista, de quem fala… sempre teve uma participação muito grande de moradores, não só falando das pautas, das matérias, dos assuntos, dando entrevista, mas mandando cartas, na época, ligando pra gente, indo até a sala do nosso meio comunitário — do qual eu fazia parte — indo até a minha casa… Até hoje, eu ando pelas ruas e as pessoas sugerem matérias e sempre foi muito participativa, sim. A comunicação comunitária é participativa, é fazer “com” e não “para”. Esse é o grande diferencial dessa comunicação comunitária favelada.

data_labe: O que a comunicação comunitária traz e agrega de diferente da mídia tradicional? Como é a sua relação com essas mídias mais hegemônicas?

Gizele: O diferencial da mídia comunitária é o ouvir em primeiro lugar. E tentar se desfazer dos seus estereótipos, dos seus preconceitos e ouvir. Porque a gente historicamente foi ensinado a ver a população favelada como uma inimiga e a comunicação comunitária tem que ter o papel de ver a favela como ela é, com todos os seus problemas, mas com todas as sua soluções. E o que diferencia a comunicação comunitária da mídia comercial, é que a mídia comercial quando pauta a favela ou é sempre na página policial, ou é sempre “um favelado venceu na vida”. Ou romantiza, ou criminaliza. E na nossa comunicação comunitária, a gente não pode fazer isso. A gente não pode reproduzir essa ideia de uma sociedade racista, que coloca a gente como problema da cidade e problema da sociedade. Sendo que a gente é a maior solução.

Então a comunicação comunitária tem que ter um outro olhar. É olhar de dentro para dentro. Não é de fora para dentro, não é de dentro para fora. É de dentro para dentro primeiro. Em primeiro lugar.

data]_labe: Você acredita que a comunicação comunitária é uma forma de ativismo? Qual a importância política dessas atividades pro Brasil de hoje?

Gizele: A comunicação comunitária, eu vejo como uma mobilização social. E quando eu digo mobilização não é na ideia de fazer um protesto , é também de mobilização na ideia de mudar ideias. Porque a comunicação comunitária ela tem que ter esse papel de mudar ideias. Por que a gente tem todo um sistema que faz com que a gente se negue, com que a gente apoie o negro no poste, com que a gente apoie a polícia matando, com que a gente apoie inúmeras coisas que acontecem com a gente na favela, sendo a gente mesmo favelado. A comunicação comunitária ela tem que ter o papel de mobilizar esse pensamento e fazer com que a gente se questione todos dias, que sociedade é essa?E coloque a gente como, como protagonista porque a gente se constrói e reconstrói na falta de direitos e que a gente não se (…). A comunicação comunitária no Brasil tem que ter esse papel. Eu venho circulando em aldeias indígenas, escolas, universidades, favelas e periferias do país em meios de comunicação e eu vejo que a gente tá sempre trazendo a comunicação com a ideia primeira de se auto –afirmar. Porque a gente no Brasil, a população pobre, ela ainda não tem esse direito de defender a sua identidade né, o seu eu enquanto grupo existente. A população negra, por exemplo, não tem espaço na sociedade brasileira. A gente tá falando de um dos países mais racistas do mundo e que aplaude, a gente tem uma sociedade que aplaude o genocídio da população negra. São 30 mil jovens por ano que são assassinados e uma sociedade toda aplaude isso. A nossa comunicação comunitária, pelo que eu vejo, ela vem relatando isso, ela tem que pautar sempre e isso é essencial.

E também a gente precisa ver a comunicação comunitária como algo profissional. Porque a gente é estigmatizado. Eu sou jornalista formada pela PUC, mas eu vou ser sempre vista como aquela que não tem qualificação. Eu amo a comunicação comunitária e to aprendendo a afirma que eu também sou jornalista. E a sociedade, a esquerda e a direita, ela precisa me ver também como jornalista e respeitar esse jornalismo comunitário e popular que a gente faz nas favelas e deixar de ver a gente como qualquer coisa. A gente não é qualquer um, a gente tá fazendo um jornalismo muito sério, uma comunicação muito séria que é da auto-estima, da defesa, que é a reafirmação e a afirmação local, e isso é muito importante. É a comunicação que deveria ser mais valorizada no nosso país.

data_labe: E você, jornalista, como você vê o futuro da comunicação comunitária nesse sentido, como você falou, como comunicadora comunitária, ter que se afirmar o tempo inteiro “eu sou jornalista, eu também sou formada, eu também faço jornalismo”, como que você vê essa situação no mercado?

Gizele: No mercado eu acho que a gente não tem muita entrada, porque eles são preconceituosos, eles ainda são muito racistas. O mercado ele é coberto pela classe média, pelos ricos falando sobre comunicação, falando sobre favela, mas nunca vivenciando e quando se vivencia é uma outra história , né. A gente vai ter uma outra narrativa, uma outra defesa, uma outra colocação que os outros ainda não aceitam e por puro racismo, por puro preconceito. Então, eu acho que o que a gente faz hoje vai começar a ser aceito daqui a 100 anos, daqui a 100 anos vão começar a aceitar a gente no mercado de trabalho, no jornalismo, começar a respeitar. Mas o que a gente tem feito hoje não é pouca coisa, é muita coisa relacionado há tempos atrás que a gente não podia nem escrever nem falar. A gente ainda não pode né?a gente tá no país que mais mata jornalista e censura jornalistas e comunicadores no mundo, depois do México. Então a gente tem uma censura muito forte, a liberdade de expressão ela não é respeitada no nosso país, mas acho que a gente já faz muita coisa. A gente existe e vai contra tudo isso e se coloca sempre, independente do que venha como resultado e isso é extremamente importante. Porque a gente tá deixando um resultado para daqui a alguns anos, para os nossos e nossas.

data_labe: Gostaria de acrescentar mais alguma coisa?

Gizele: Sim, relatar que a comunicação comunitária cresce no Brasil, na América Latina e nos países pobres da África não é a toa. É porque a mídia comercial não relata a gente, não põe a gente como a gente realmente é, não defende, não coloca os direitos humanos. Não é a toa que nos países pobres essa comunicação comunitária e popular vem crescendo. Vem crescendo porque essa população pobre tem essa necessidade de falar e se colocar. E colocar também que é essa comunicação, a rádio comunitária fechada, essa comunicação que é censurada, essa é a nossa comunicação que não deixam a gente fazer. E não é por acaso, é uma briga ideológica, é uma briga racial, é uma briga de gênero, é uma briga com o capital, com o capitalismo. Que quer derrotar a gente, que quer que a gente continue sendo máquina e não que a gente vire pessoas, figuras pensantes. E isso é um desafio nosso, da comunicação comunitária. E a gente tem que se reafirmar todos os dias, mas vale a pena e a comunicação é isso. Comunicação é um direito e a comunicação comunitária é um dever nosso. A gente necessita se colocar a todo tempo, sem a gente se auto censurar, mas se a gente sentir que tá sofrendo algum risco, que a gente busque apoio, apoio das organizações de direitos humanos, apoio de outros comunicadores e comunicadoras. Que a gente nunca deixe de falar, mesmo que a gente mude de estratégia, mas deixar de falar nunca. É um dever nosso, não deixar de falar.

--

--

Fernanda Távora
data_labe

Moradora da Zona Oeste do Rio de Janeiro e jornalista