Análise da música brasileira — parte 2: Complexidade Harmônica

Leonardo Sales
datacoffee
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8 min readJan 27, 2024

Começemos com uma simples visão de complexidade.

Cada bolha abaixo é um artista do cenário nacional. Estão coloridos pelo estilo ao qual pertencem e dispostos em 2 dimensões. Na horizontal, pelo número de total de acordes utilizados em todas as músicas, na vertical pelo número de acordes utilizados em média por música. O tamanho da bolha indica o número de músicas:

Artistas brasileiros — complexidade harmônica (melhor visualização aqui)

Esse primeiro gráfico ilustra como é possível encontrar padrões que ajudam a quantificar a complexidade das músicas e agrupar músicos a partir de sua produção. Vamos detalhar nessa postagem como chegamos a esses e outros indicadores de complexidade harmônica.

Como explicado anteriormente, obtive os dados de mais de 31 mil cifras raspando o site cifraclub¹. Os dados foram organizados em uma tabela como exemplificado aqui:

Extrato de tabela com os dados obtidos via webscrapping

A partir desses dados, para medir a complexidade harmônica, utilizei os seguintes indicadores, aqui melhor explicados:

Número de acordes distintos utilizados na música

É a contagem de acordes, sem repetição, usados na música. Por exemplo, na música Que País é Esse, da Legião Urbana, a cifra se apresenta assim:

Cifra Que País é Este?, Legião Urbana. Link

Perceba que apenas 3 acordes se repetem durante toda a música: Em (Mi menor), C (Dó maior) e D (Ré maior). Neste caso o valor desse indicador para essa música é 3 (três acordes distintos).

Já a música Gabriela, de Tom Jobim, possui incríveis 108 acordes diferentes, é a recordista neste quesito dentre as 31 mil canções analisadas:

Trecho de Gabriela — Tom Jobim. Link

Percentual de acordes fora do campo harmônico

Aqui entramos num ponto mais complexo. Pode-se entender o campo harmônico como o conjunto básico de acordes, relacionados à tonalidade, que cumprem determinadas funções harmônicas na música. O compositor pode utilizar somente esses acordes ou tentar enriquecer a música com a utilização de acordes emprestados de outras tonalidades, cumprindo funções de transição dentro da cadência harmônica. O que fiz aqui foi contabilizar o uso de acordes fora do campo harmônico da tonalidade para cada música.

A título de exemplo, vejamos um trecho de O Caderno, de Toquinho:

Trecho de O Caderno — Toquinho. Link

A tonalidade da música é do Dó maior, e a maior parte dos acordes dessa sequência fazem parte do respectivo campo harmônico. Duas exceções seriam o Gm6(11), que antecede o Fá, e o A5+, que prepara para o Dm.

Que País é Este, mostrada antes, tem todos os acordes dentro do campo harmônico de Mi menor, sendo portanto menos complexa nesse aspecto.

Tamanho médio das progressões

Considerando o mesmo conceito de campo harmônico, aqui eu busco medir o tamanho médio dos ciclos, ou progressões de acordes, que levam ao primeiro grau do campo. Uma progressão muito simples e conhecida na música popular é o 2–5–1, em que se inicia no primeiro grau, passa-se ao segundo, ao quinto e se retorna ao primeiro grau.

Quanto maior os meandros e desvios seguidos durante esses trajetos, normalmente com o uso de empréstimos modais, maior a complexidade da música. O que eu fiz, na prática, foi identificar em cada sequência de acordes nas músicas, o primeiro grau do campo, e contar quantos acordes havia entre eles, na média.

Um exemplo aqui, trecho da música Meu Erro, dos Paralamas, com a sequência de acordes e o primeiro grau do campo em negrito:

[A, C#m, D, Dm, A, C#m, D, Dm, C#m, F#m, D, Dm, A]

Veja que o primeiro ciclo tem uma distância de 4 notas entre os acordes de primeiro grau. Já o segundo é mais longo, com 8 notas separando. Na média teríamos um ciclo de tamanho 6.

Quanto mais complexo esse caminho, maior esse indicador, de acordo?

Complexidade dos acordes

Contabilizo aqui a presença de quartas, sétimas, nonas, e outros acréscimos à tríade básica dos acordes. Um acorde seria um conjunto de notas tocadas ao mesmo tempo, os mais simples possuindo 3 notas², que seriam a tônica, a terça e a quinta nota da respectiva escala. O que o indicador de complexidade faz é contabilizar a presença de notas além dessas básicas.

Por exemplo, um acorde como um C6/9 (dó com sexta e nona) recebe o valor 5 para esse índice, pois apresenta essas duas notas adicionais, além da base de 3 notas.

Raridade dos acordes

Aqui a ideia foi pontuar o acorde com um valor inversamente proporcional a quantas vezes ele foi utilizado em todo o conjunto de dados. Acordes muito comuns terão nota menor, os mais incomuns, nota maior. Matematicamente, cada acorde é pontuado pela razão 1/n, sendo n o número de vezes em que aparece na base.

Um acorde muito comum, digamos o Dó Maior, tem um valor bem pequeno, pois aparece 155174 vezes na base de análise. É utilizado em mais de 40% das músicas. Já o Si Bemol com sétima, décima primeira aumentada e décima terceira bemol (Bb7(11+/13-)) só aparece 2 vezes em 2 das 31 mil músicas. Sendo assim, mais raro, consequentemente mais valorado nessa lógica.

Padronização e nota final

Como os indicadores criados estão em escalas diferentes, padronizei eles pelo seu posicionamento na distribuição dos respectivos valores de todas as músicas. A distribuição foi dividida em 10 partes (decis). Cada indicador padronizado recebe então nota 10 se estiver entre os 10% maiores, e nota 1 se estiver entre os 10% menores, estando os demais valores padronizados distribuídos entre 1 e 10 seguindo a mesma lógica.

As notas desses indicadores foram atribuídas para cada música, e depois agrupadas, pela média, por artista. Resultando numa tabela que resume a nota de cada artista para esses indicadores, conforme vemos abaixo:

A nota final é simplesmente a média desses indicadores, e de mais 2, também padronizados: número de músicas e quantidade total de acordes³.

Quem são os artistas com maior complexidade harmônica?

O top 20 resultante é este:

TOP 20 — Artistas, pela nota da Harmonia (melhor visualização aqui)

Alguma surpresa aí? Vejo que o resultado reflete muito a influência da Bossa Nova na MPB das décadas de 60 e 70, e dos artistas que surgem a partir dali, sendo uma das bases desse ritmo brasileiro justamente a inclusão de complexidade nos acordes e harmonias, captada aqui. Uma vez Caetano Veloso disse que Chico Buarque anda pra frente mas carrega junto a tradição. O primeiro lugar deixa isso claro.

Pra mim, a princípio foi surpresa a presença de artistas de samba e pagode dentre os primeiros. Entendo que há 2 razões para isso: primeiramente, a confluência entre samba e MPB; em segundo lugar, olhando com detalhe as cifras, o pagode possui algumas composições bem complexas mesmo. Veja este trecho da canção Tá Vendo Aquela Lua, do Exaltasamba:

Tá Vendo Aquela Lua, Exaltasamba

Mas nem tudo são flores. Na ponta de baixo desse ranking, temos a seguinte lista:

Artistas com pior nota — Harmonia (melhor visualização aqui)

Predominam no fundão 4 estilos: Funk, Forró, Pisadinha e Trap. O que acha? Entendo que são ritmos que, na média, não investem muito em harmonias complexas mesmo.

Para ilustrar a diferença entre os artistas com mais e menos complexidade, os gráficos de "radar" abaixo podem ser úteis. Veja os atributos de complexidade harmônica de Chico Buarque, Tom Jobim e Ivan Lins comparados a Tiririca, Mc Pipokinha e Manoel Gomes:

Artistas mais x menos complexos (melhor visualização aqui)

O Gráfico de radar de cada artista apresenta os 7 atributos considerados ao mesmo tempo para cada um. Quanto mais "cheio" o radar, maior a complexidade do artista. Veja que os 3 artistas de cima têm nota máxima em 5 dos 7 atributos.

Agregando os resultados por Estilo

Esse é o ranking dos estilos musicais, por nota de complexidade harmônica.

Estilos — ranking por complexidade harmônica (melhor visualização aqui)

Com o tempo as harmonias ficaram mais simples

Um leitor atento pode ponderar que os ritmos mais recentes no Brasil são harmonicmente mais simples do que os mais antigos. Vejam que funk, piseiro e trap só existem no Brasil a partir do final da década de 90, enquanto a Bossa Nova já é bem antiga, assim como a MPB.

Vamos então testar essa hipótese, de que o tempo têm grande influência na redução da complexidade harmônica, vendo como o indicador geral de harmonia evoluiu ao longo do tempo. Para isso, considerei a data da primeira gravação de aproximadamente 11 mil músicas da base utilizada (lembremos que havia 31 mil). Dessas 11 mil músicas foi possível obter a data de gravação a partir de nova raspagem de dados, dessa vez do site Vagalume.

Entre os anos de 1952 e 2023, esta foi a evolução da nota média das músicas:

Complexidade harmônica ao longo do tempo (melhor visualização aqui)

De fato, percebemos uma queda bem forte na complexidade harmônica das músicas. Para se ter uma ideia, a média de acordes distintos nas músicas de 2023 foi de 5, algo que se encontra em Marcha Soldado, na versão da Galinha Pintadinha:

Trecho de Marcha Soldado — Galinha Pintadinha. Link

Combinando com o mostrado nos gráficos anteriores, podemos correlacionar isso à chegada de estilos mais simples no cenário nacional. Ritmos como piseiro e funk jogam a nota para baixo:

Funk e Piseiro — evolução média de complexidade

Mas ritmos mais perenes, como a MBP também apresentam tendência de queda na harmonia nas últimas décadas (embora com uma recuperação nos últimos anos). Veja:

MPB — evolução da média de complexidade

Isso certamente também tem impacto no índice geral de complexidade harmônica atual em comparação com a década de 60. Certamente a "nova MPB" tem harmonias menos complexas do que os dinossauros do estilo costumavam fazer.

O que achou desta análise? Veja os demais estudos: aqui, aqui.

Notas

[1] Código de raspagem aqui.

[2] Para esta análise, considerei os chamados "power chords", que só têm 2 notas, a tônica e a quinta, como um acorde simples com indicador 3 mesmo.

[3] Para esses 2 indicadores agregados do artista foram consideradas todas as músicas publicadas no site, independentemente de estarem na amostra de 31 mil músicas analisadas no detalhe para os demais indicadores.

[4] Código aqui.

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Leonardo Sales
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Egresso das humanas, mestre em economia do setor público, apaixonado por dados, python e música, intrigado com política.