Privacidade & Smart Cities

Oportunidade, Segurança e Opacidade

Blog Data is Mine
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9 min readSep 4, 2019

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O ativismo pela privacidade e proteção de dados pessoais é uma tarefa e tanto. Sempre paira o risco de acharem as considerações, previsões e ações coisas de paranóicos ou ingênuos, já que o uso e comercialização dos nossos dados pessoais foi “normalizado”, em troca de serviços “gratuitos” e muito convenientes. Hoje, as empresas especializadas nisso tornaram-se tão poderosas que, parece, nada será capaz de detê-las.

Embora privacidade ainda não seja um assunto muito popular, o fato é que tornou-se um tema incontornável depois de tantas notícias alarmantes relacionadas ao compartilhamento abusivo dos nossos dados pessoais que colocam em risco desde a nossa privacidade até regimes democráticos.

Cada vez mais, a nossa vida é organizada digitalmente: compras, viagens, estudos, profissão, relacionamentos… E, assim sendo, é hora de olharmos para o uso das tecnologias digitais como fio condutor do debate sobre nosso futuro em sociedade sob perspectivas positivas, de construções de futuro visando o bem-comum. Precisamos ter a coragem de repensar radicalmente o papel que as tecnologias desempenham em nossas vidas e como elas são usadas.

Privacidade vs Oportunidade

Consideremos como privacidade a prerrogativa de indivíduos, grupos ou instituições para determinar por si próprios quando, como e até que ponto as informações sobre eles podem ser comunicadas a outros. Ultimamente, andam dizendo [e querendo nos fazer acreditar nisso como coisa dada!] que a privacidade morreu. Você já parou pra pensar nisso? Acha que seremos obrigados a abrir mão da nossa privacidade em troca de serviços e benefícios essenciais? Você quer ter controle sobre seus dados?

Com o adensamento de pessoas vivendo em áreas urbanas, é preciso coletar cada vez mais dados, em tese, para administrar toda essa gente vivendo junto, num mesmo lugar. E a tese consolida-se com a afirmação de que será cada vez mais necessário medir para saber o que está acontecendo e, assim, poder criar soluções e tomar decisões. Isto traz preocupações com a privacidade, segurança e vigilância dos cidadãos. Afinal, não sabemos quais protocolos são utilizados. Além disso, a governança do acesso e uso dos nossos dados pelo poder público é uma bagunça digna de um dos países mais burocráticos do mundo.

Campanha do IDEC alerta sobre o uso de informações pessoais

Dados pessoais vão muito além de um CPF, RG ou número de telefone. Estamos falando da proteção da nossa vida, da nossa personalidade, de tudo que nós representamos, dos nossos hábitos, de como pensamos, agimos e interagimos no e com o mundo.

Quando se fala sobre privacidade na era digital, há uma tendência de que as pessoas se vitimizem e entreguem os pontos, aderindo a um discurso “distópico” do tipo: “tem mais jeito, não”, “nossos dados já estão todos por aí mesmo…”, “nem lei vai dar conta”. Com isso, limitam-se as perspectivas para imaginar alternativas e futuros possíveis.

Afinal, de onde vem a noção de que é impossível preservar nosso direito à privacidade em troca de progresso e inovação? O que impede que a expectativa por privacidade (direito constitucional) do indivíduo seja contemplada nos requisitos iniciais da concepção de um projeto ou na construção e uso de uma nova tecnologia? As pessoas não deveriam precisar escolher entre privacidade e acesso à serviços. É preciso ter os dois.

Está em nossas mãos agora, já, em forma de oportunidades que garantem nossa privacidade:

1º- Entender quais ferramentas e autoridades temos à disposição para que os cidadãos não tenham de abrir mão do que quer que seja — ao contrário, também ganhem com isso.

2º- Construir e apoiar as novas soluções e tecnologias que visam ao bem-comum.

3º- Cobrar transparência e melhor usabilidade dos serviços que utilizam nossos dados para que tenhamos efetivo controle sobre as nossas informações e seus usos específicos.

Em termos práticos, vamos analisar a Lei do Cadastro Positivo, que torna automática a inclusão de dados de pessoas em birôs de crédito que irão calcular notas de zero a mil em uma escala de bons pagadores, com a promessa de “acesso a crédito”. Destacarei, neste caso, a fundamental questão do consentimento. É inquestionável o caráter paternalista e chantagista do Estado, ao ignorar que somos os titulares e detentores dos nossos dados, e nos classificar desta ou daquela maneira. O que, a propósito, nos faz pensar: Onde foram parar nossos dados? Quais dados estão sendo utilizados? Quais são as lógicas por trás do cálculo desse score? Quem garante a integridade desse processo?

Temos o direito de excluir nossos dados a qualquer momento mas, comparativamente, quais seriam os custos para fazer valer esse direito previsto em lei, ou simplesmente deixar pra lá? Dada a poderosa influência da inércia no comportamento humano (Thaler e Sunstein, 2009), a burocracia acaba sempre vencendo, enquanto nossos direitos vão sendo enfraquecidos e retirados.

Privacidade vs Segurança

Pode-se afirmar que, tendo em vista a noção de privacidade dos pontos de vista antropológico e psicológico, faz mais sentido manter certo grau de privacidade em nome da nossa segurança. Mas essa lógica foi invertida: querem nos fazer entregar nossa privacidade em nome da segurança.

Sob pretexto de inovação em segurança pública, o Metrô de São Paulo (empresa de economia mista cuja maior parte das ações pertence ao Governo do Estado) irá contratar um novo sistema de monitoramento em suas áreas de operação, e entre os equipamentos estão câmeras com capacidade de reconhecimento facial.

O reconhecimento facial é uma tecnologia que pode ser altamente invasiva, ainda muito imprecisa e com eficiência limitada (a probabilidade de erro é em torno de 90%), além de que não existe regulação específica para o seu uso.

Defensores de direitos civis alertam para a disseminação deste tipo de tecnologia, que pode se tornar uma ferramenta de controle social. Seu uso deveria, então, ser muito bem justificado diante do risco da perda de liberdades. Há quem defenda, inclusive, que essa tecnologia seja totalmente banida.

Visto que existem níveis de reconhecimento facial (desde a simples detecção de um rosto humano, até a atribuição de um ID único a esse rosto e o cruzamento disto com outras bases de dados), em que medida o uso desse tipo de tecnologia em espaços públicos seria realmente benéfico para sociedade? Quais as garantias de que não haverá discriminação ou outros efeitos colaterais?

Privacidade vs Opacidade

Dentro dos debates sobre dados pessoais e vigilância, tudo indica que ainda estamos presos à questão da privacidade. No entanto, precisamos também examinar o conceito de opacidade como um mecanismo a ser considerado, e que pode ser eficaz na proteção dos indivíduos em suas atividades do dia a dia. Se os cidadãos realmente valorizam a possibilidade de se comunicar através de canais públicos e em lugares públicos, mantendo certo nível de proteção a sua privacidade, precisaremos de diferentes tipos de recursos.

Opacidade é a ideia de que a informação é segura — pelo menos até certo ponto — quando é difícil obter ou entender. Como vimos, este conceito pode ser usado inclusive pelo Estado para dificultar o acesso e controle dos cidadãos aos seus próprios dados. Mas também pode ser uma forma para dificultar que terceiros encontrem, acessem ou entendam nossas informações. Ou seja, como a opacidade pode ser usada a favor da privacidade?

Quando a informação é difícil de se obter ou entender, as únicas pessoas que realmente vão atrás dela são aquelas com motivação suficiente para gastar o esforço e os recursos necessários.

Recursos que promovam a opacidade podem limitar quem vê nossas informações ou monitora nossas publicações. Neste sentido, classificar informações em termos binários como “públicas” ou “privadas” é insuficiente. Estes seriam os dois extremos: de um lado, as informações que estamos gritando à plenos pulmões quando queremos ser absolutamente transparentes. Do outro, estão as informações que queremos manter conosco em segredo absoluto. Há muitos intermediários possíveis entre esses extremos e que podem ser traduzido em features em serviços digitais, no que diz respeito à experiência direta do usuário, ajudando a construir confiança e reputação nos serviços.

A Opacidade pode ser compreendida como a forma em que o espaço, o tempo e as nossas limitações cognitivas dificultam que outros descubram tudo sobre nós. Consideremos o espaço: quanto mais longe as pessoas estão, mais difícil é enxergar, a olho nu, quem são e onde estão indo. O skype, por exemplo, liberou uma ferramenta de desfoque do plano de fundo, no início deste ano. A funcionalidade usa inteligência artificial para detectar cabelo, mãos e braços, e direcionar o foco para a pessoa, tornando possível a chamada de vídeo sem exibir, indesejadamente, o ambiente em que se está.

Considerando o tempo: Nossas recordações desaparecem com o passar do tempo, mas a internet tem uma memória impecável. A privacidade e fugacidade das publicações que expiram após 24h do stories do Instagram, por exemplo, são hoje um grande sucesso. Os usuários podem compartilhar suas experiências com as pessoas que escolhem, sem que este conteúdo seja armazenado (embora não seja este o caso do Instagram), e as interações são vistas apenas por quem fez a publicação.

Considerando as limitações cognitivas, pense: quantos indivíduos você consegue reconhecer em tempo real, fora as pessoas muito próximas? É uma restrição biológica que as tecnologias de reconhecimento facial podem superar.

A tendência é que essa tecnologia continue a crescer. Se as consequências e interferências dela em nossas vidas não forem discutidas amplamente com a sociedade, para a instituição de uma legislação que beneficie a todos, podemos perder a capacidade de sair em público sem sermos reconhecidos por empresas [governamentais e privadas] ou pela polícia.

Um pensamento pode passar pela cabeça: e por que eu quereria me esconder? A Opacidade é vital para nosso bem-estar — e o bem-estar coletivo — por muitos motivos. Dá espaço de respiro pra levar nossa rotina sem tanto medo de julgamentos, publicidade indesejada e sem sermos desnecessariamente incomodados [são inúmeros os casos de ciberbullying, que levam até suicídios, por exemplo].

Construir novos recursos com foco na expectativa por privacidade do indivíduo, é uma discussão e um compromisso multidisciplinar, e depende também de cada um de nós. Com a crescente tomada de consciência das pessoas em relação à influência da tecnologia nas nossas vidas, as perigosas consequências do uso abusivo dos nossos dados e sob a perspectiva da entrada em vigor da LGPD no ano que vêm, vão sair na frente os negócios que propuserem outros caminhos que considerem essa questão não só do ponto de vista do compliance legal ou da construção de uma infraestrutura técnica segura, mas também pensando recursos na interface com o indivíduo, a fim de gerar a confiança do público em seus produtos ou serviços.

Afinal, como garantir que a privacidade do cidadão seja respeitada e, ao mesmo tempo, utilizar dados para melhorar os serviços públicos?

As cidades já coletam uma quantidade enorme de dados das pessoas, mas elas não necessariamente deixam os cidadãos decidirem sobre como esses dados são utilizados.

É importante a educação digital, para que as pessoas saibam decidir sobre os serviços que estão sendo oferecidos e gerar engajamento. Algumas das propostas da Data is Mine:

  • Promover uma política de dados abertos.
  • Construir políticas de privacidade e de uso de dados muito claras para todas as partes envolvidas [cidadão — governo — empresas].
  • Disponibilizar todos os dados que a cidade coleta e mostrar as evidências de seu uso, de forma que os cidadãos saibam como e onde o governo utiliza essas informações, e tenham autonomia para autorizar ou não o uso de seus dados pessoais.

Esse pode ser um bom início para gerar confiança pública e integridade dos serviços.

Há quem defenda que a privacidade é um tema tão importante que as cidades precisam ensinar os cidadãos a se defenderem como se fosse questão de saúde pública. E a Data is Mine se soma a essa visão.

*Esta é uma versão ampliada da palestra “Qual a relação entre Privacidade e Cidades Inteligentes?, realizada na The Developers Conference São Paulo 2019, na Trilha Smart Cities — evento no qual vários palestrantes abordam as cidades inteligentes sob diversos aspectos. Neste contexto, falei sobre privacidade da perspectiva do cidadão.

Edição: Elisabete Santana — Jornalista, Ethical Sourcing Directrix

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