Para onde ir? A falta de leitos diante do avanço da pandemia

Gabriel Vaz de Melo
datavizbr
Published in
6 min readMay 14, 2020

A grandeza e a desigualdade parecem sempre coexistir em qualquer realidade brasileira. Na saúde não é diferente. O melhor exemplo atual disso é o desafio da disponibilidade de leitos hospitalares no cenário da pandemia de COVID-19. Em março deste ano, diversas instituições de pesquisa, como a Fiocruz, o Cedeplar e o IEPS, já alertavam não só para a escassez de leitos e equipamentos em diversas regiões do país, como, também, para a urgência da adoção de medidas de mitigação dos impactos da pandemia no sistema de saúde. Hoje, a situação é crítica em vários estados e as vidas perdidas aumentam a cada dia.

Em abril, a fim de contribuir com o enfrentamento da pandemia, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou resultados preliminares da pesquisa REGIC (Regiões de Influência das Cidades) de 2018. Foram apresentadas as informações sobre os deslocamentos para serviços de saúde no país. É possível acessá-los na página e no painel interativo do IBGE.

Para quem não conhece, a REGIC é uma pesquisa sobre a hierarquização e regionalização dos centros urbanos brasileiros segundo sua zona de influência, e não era atualizada desde 2007. O lançamento completo da pesquisa está previsto para este ano ainda. Em 2018, no que se refere à saúde, investigou-se quais seriam os municípios mais procurados pela população para serviços de baixa/média e alta complexidade. Segundo a nota técnica do IBGE, serviços de baixa e média complexidade compreendem consultas médicas e odontológicas, exames clínicos, serviços ortopédicos e radiológicos, fisioterapia e pequenas cirurgias, dentre outros atendimentos que não impliquem em internação. Já os serviços de alta complexidade envolvem tratamentos especializados com alto custo envolvendo internação, cirurgias, ressonância magnética, tomografia e tratamentos de câncer.

A partir das respostas dos questionários aplicados às instituições elaborou-se um Índice de Atração para cada cidade e, posteriormente, foi possível construir uma rede de deslocamentos populacionais por serviços de saúde intermunicipais. Mesmo com a ampla cobertura de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS), os resultados demonstram realidades bem diferentes em cada região, principalmente tratando-se dos serviços de alta complexidade. Segundo o IBGE:

Como a distribuição dos serviços de saúde de alta complexidade tende a ser mais seletiva espacialmente, há maior concentração territorial dos fluxos para este fim, implicando em maiores distâncias a serem percorridas pela população.

Breve destaques dos resultados preliminares da saúde da REGIC 2018.
Destaques dos resultados preliminares da REGIC 2018 (Fonte: IBGE, 2020).

Assim, enquanto nas regiões Sul e Sudeste os deslocamentos para os serviços de alta complexidade são, em média, de 100 km, na Norte e Centro-Oeste essa média sobe para 276 e 256 km, respectivamente. O fluxo dos principais deslocamentos para esses serviços podem ser observados no mapa a seguir.

Mapa com principais deslocamentos por serviços de saúde de alta complexidade no Brasil.
Principais deslocamentos por serviços de saúde de alta complexidade segundo a REGIC 2018 (Fonte: IBGE, 2020. Elaboração: Gabriel Vaz de Melo).

A nota destaca as regiões Sul e Sudeste onde, visivelmente, os fluxos se “distribuem entre as capitais e centralidades de menor porte presentes no interior”. No Nordeste os principais deslocamentos são em direção às capitais litorâneas. Destaca-se também Teresina com a maior atração em termos de cidades — 300 municípios no total — atraindo não só de outras cidades do Piauí, como também do interior do Maranhão. Nas regiões Norte e Centro-Oeste, a concentração nas capitais fica evidente.

Nota: Mapa de fluxos gerado no R com 📦{mapdeck} e 📦{geobr} para carregar os estados e sedes municipais (pontos de origem e destino). Registro, aqui, meus agradecimentos aos desenvolvedores.

Diante dos resultados apresentados e de acordo com informações do CNES (Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde) do Ministério da Saúde, verifiquei a evolução dos casos de COVID-19 em municípios onde não havia leitos de UTI disponíveis no SUS. Os dados do CNES são referentes a março de 2020 e podem ter sofrido alterações desde então, principalmente em função da pandemia. Para saber quais municípios tinham casos confirmados utilizei a base do Brasil.IO, com última atualização no dia 10 de maio de 2020. Parabenizo Álvaro Justen e voluntários pelo trabalho no tratamento e disponibilização dessas informações, tão essenciais neste momento.

Segundo o CNES, 91% dos municípios brasileiros não possuem leitos de UTI no SUS. Dos que possuem, a distribuição entre os Estados é desigual. No estado de São Paulo, 18% dos municípios possuem leitos de UTI públicos. Já em Amapá, Acre, Roraima e Amazonas, apenas as respectivas capitais possuem leitos.

Os contingentes populacionais e o número de municípios de cada estado influenciam essa diferença, razão pela qual existem as macrorregiões e microrregiões de saúde. Contudo, no cenário atual de pandemia é preciso questionar: como atender aqueles pacientes, em sua maioria dependentes do SUS e que necessitam de tratamentos intensivos se não há infraestrutura suficiente?

Em regiões como o Amazonas, onde ainda há limitações físicas de deslocamentos, observamos a multiplicação dos casos. Até o dia 10 do mês de maio, 43% dos casos estavam concentrados em municípios sem leitos de UTI no SUS. No Piauí, essa proporção era de 32%. Já no estado de São Paulo, de 7%.

Hoje, o Amazonas tem a maior taxa de óbitos por COVID-19 por habitantes. Conforme é possível observar pelos gráficos acima, em várias localidades a ocorrência de casos em municípios sem leitos de UTI tem se intensificado. Além da impossibilidade de tratamento no município de residência, muitos pacientes sofrem com as dificuldades de deslocamento (distância, transporte, etc.) ou com a falta de leitos disponíveis em outros municípios. Nos estados do Norte e do Nordeste, muitas vezes as capitais já estão com o sistema hospitalar sobrecarregados.

Voltando aos resultados da REGIC, a partir da rede de deslocamentos para serviços de saúde de alta complexidade — que inclui internações — fiz um exercício para visualizar o fluxo de eventuais deslocamentos de pacientes graves por COVID-19 para municípios onde há leitos de UTI no SUS. O objetivo é dimensionar como a capacidade de atendimento difere em cada local.

A representação a seguir considera uma proporção de 5% de casos graves com origem em municípios sem leitos de UTI no SUS. Ou seja, cada linha representaria o deslocamento de pelo menos um paciente grave com a finalidade de internação em um município onde haja leitos de UTI. A escala de cores e a largura das linhas são proporcionais ao número de casos graves hipotéticos em cada local.

Nota: ⚠️ Não são utilizados dados reais de deslocamentos de pacientes de COVID-19 com finalidade de internação. Imagem meramente ilustrativa.

Nesse cenário, fica evidente como várias capitais do Norte e Nordeste receberiam fluxos elevados e vindos de várias cidades. Considerando os casos confirmados até o dia 10 de maio, somente a cidade de Manaus receberia casos graves de 37 cidades, Fortaleza de 32, Belém de 29, São Luís de 19, Teresina 14 e Recife de 11 cidades.

Em termos de fluxos, Manaus já teria recebido cerca de 269 pacientes graves, uma média de 7 pacientes por cidade, enquanto Fortaleza teria recebido 82, média de 2,6 pacientes por cidade. Vale ressaltar que, segundo o CNES, Manaus possuía 192 leitos de UTI no SUS em março deste ano.

Novamente, essas são informações meramente ilustrativas, mas que nos ajudam a avaliar a realidade e pensar em estratégias de mitigação dos impactos. Vale ressaltar o quão difíceis as transferências para municípios com leitos de UTI podem ser. Além de muitos estarem ocupados, o longo tempo de deslocamentos e a ausência de transporte adequado para percorrê-los, principalmente em meio à pandemia, são fatores que impossibilitam esse traslado. Tais dificuldades facilmente resultam no aumento de óbitos observados em várias localidades.

Por isso, é preciso reforçar que as medidas de isolamento social representam o caminho mais seguro para contermos o avanço da pandemia e pouparmos mais vidas. Se puder, fique em casa. Além disso, os governos devem se articular para informar a população, realizar trabalhos de prevenção e suprir parte da carência de estruturas e equipamentos nos gargalos como aqueles aqui apontados, utilizando-se, inclusive, da capacidade instalada na rede privada. Afinal, se não conseguirmos mais respirar, para onde vamos?

Outros dados utilizados: códigos de municípios disponível em Base dos Dados.

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