Um relato pessoal sobre design, infografia e a desigualdade brasileira

Uma história para além dos dados, por alguém que está acostumado a usar dados para contar histórias

Lucas Gomes
datavizbr
8 min readJun 14, 2022

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A pedido do Rodrigo Medeiros venho trazer para a comunidade DataVizBr um apanhado da história que me trouxe até aqui. Como se trata de um texto autobiográfico, pode conter uma série de pensamentos enviesados, mas a todo tempo busquei me aproximar mais da proposta que é mostrar as barreiras do design e da infografia em um país como nosso.

Contexto

Minha história se mistura com a história das desigualdades brasileiras, especificamente as do Rio de Janeiro. Ela começa, até onde sei, quando meus avôs, saíram de Pernambuco (materno) e da Paraíba (paterno) para o Sudeste escapando da seca. Aqui, não conseguiram moradia perto do trabalho e criaram morada na Baixada, à margem do acesso pleno a serviços básicos como água, esgoto e transporte público.

Eu nasci em 1994 em Nilópolis, uma cidade-satélite da capital carioca, a cerca de 30km do Rio, onde a viagem de ida e volta pode levar tirar até cinco horas do seu dia. Cotidiano das pessoas que me criaram, minha mãe, minha vó e minhas tias e tios faziam esse trajeto desde que saíram da escola para o emprego que aparecesse.

Mapa do Rio de Janeiro mostrando a distância da minha casa para os lugares da cidade que frequentava
O mapa mostra um pouco do que era a minha rotina e de tantas outras pessoas. É uma adaptação que fiz para pessoas fora do Brasil, então marquei o Cristo Redentor para criar um ponto de conexão.

Observe que mencionei sobretudo mulheres na minha criação. Uma realidade constante nas periferias do Brasil é o abandono parental, quando um dos pais, na maioria esmagadora o homem, se isenta de dividir com a parceira (financeiramente e em todos os outros aspectos) os cuidados com os filhos. Esse é mais um ingrediente na minha formação.

Desde que me entendo por gente, era uma criança interessada no desenho e em contar história com imagens e desenhos explicativos (daqueles que só a criança que fez entende). Esse interesse ajudou às pessoas que me criaram a me incentivar e investir, nos materiais de desenhos que era possível comprar e em qualquer coisa que fosse uma luz nessa trajetória. Como um tio que me deu uma enciclopédia ganha juntando selos do Jornal Extra.

Os sebos e as bibliotecas públicas foram essenciais na minha história. Minhas primeiras referências para além da TV aberta eram achados do sebo e revistas que encontrava na biblioteca da escola.

Nessa mesma década acompanhei, sem saber, algumas das peças que explicam o nosso cenário hoje: o aumento da percepção da violência, a ascensão das igrejas evangélicas (um refúgio da violência para a minha família) e as políticas de alívio à pobreza dos governos petistas, que trouxe uma oportunidade da minha mãe fazer uma faculdade de Pedagogia pelo ProUni e começar um processo de valorização do ensino dentro de casa.

Esse é o caldo que me formou. São poucos os meninos e meninas que cresceram junto comigo que se quer podiam cogitar o acesso à universidade. O acesso que não se restringe apenas a oportunidades mas a uma série de condições que faz a vida de quem nasce na classe média brasileira ter um abismo de diferença entre as pessoas de baixa renda.

Acessos

Em 2008, passei em uma repescagem para estudar em uma escola de ensino técnico próxima ao centro do Rio de Janeiro. Na Faetec, tive o meu primeiro contato com o trabalho de designer. Ali, no último ano, recebi a orientação de fazer a faculdade de Design na Escola de Belas Artes da UFRJ, a maior universidade federal do país, que tem uma tradição no ensino artístico.

A minha família via esse movimento com a mesma expectativa que a família de muitos meninos tem ao fazer o teste para ingressar em um clube de futebol. Elas acreditavam no meu potencial, mas ninguém na família, tinha se quer tentado uma vaga em uma universidade federal. Os únicos ingressos conhecidos, até então, eram os patrões e filhos de patrões das casas onde minha família fazia faxina.

Este foi o primeiro infográfico que criei enquanto estava na faculdade. 2015. O tema livre me levou, pela primeira vez, a retratar um dos problemas que enfrentava todos os dias.

Em 2012, na minha segunda tentativa, consegui ingressar na UFRJ, mais uma vez na repescagem, dessa vez na última de todas e graças a um sistema de cotas recém-implementadas voltadas para estudantes de baixa-renda. Conheci a disparidade no acesso à educação, com meus colegas de classe com recursos que nem o meu parente mais rico tinha acesso.

Essa disparidade também se refletia nas referências artísticas, na minha linguagem, no tempo de deslocamento da minha casa até a faculdade e no meu acesso aos museus e encontros sociais. Mas, o principal aspecto era a escassez de grana, o que me levou a procurar emprego no primeiro ano de faculdade. Estagiei em quatro lugares, como não falava em inglês era frequentemente limado dos processos seletivos de grandes empresas.

Dois anos depois, o meu desempenho ruim nas aulas práticas e teóricas, começou a mudar quando encontrei na leitura uma forma de passar as cinco horas diárias que passava no ônibus. Assim, criei uma bagagem cultural paralela que muito me ajudou a desenvolver projetos interessantes e entender melhor qual área dentro do design eu almejava seguir, entre outros aspectos da vida.

Durante os principais eventos da cidade eu me dividia entre transporte, estágio e faculdade sem poder olhar muito bem para o que acontecia ao lado. Mas também foi nessa época que li os clássicos que estão entre os meus livros favoritos até hoje.

É por volta de 2016 que entendi que a minha maior afinidade, entre as tantas especializações que existem no design: a infografia. Nesse momento, eu trabalhava para algumas agências de design no Rio de Janeiro, esses trabalhos estavam fora da minha área de interesse mas me garantiam a grana necessária para cobrir meus custos pessoais.

Assim, decidi fazer um grande trabalho de conclusão de curso que me abrisse as portas. Por oito meses gastei todos os meus finais de semana na sua produção, num livro paradidático que contemplou a produção do texto, das ilustrações e dos infográficos que apoiavam a narrativa. Também abandonei meus estudos em inglês, o tempo sempre foi limitado.

Em 2017 apresento meu projeto final e consigo fazer ele ser conhecido pelos editores do jornal O Globo, até então, por não saber inglês, eu não conseguia passar pelo processo seletivo da redação. Felizmente um amigo trabalhava lá e fez a ponte para que eu conhecesse a equipe de profissionais daquele que no momento era o único grande jornal do estado do Rio de Janeiro.

Meu trabalho de conclusão foi um livro ilustrado com infográficos que ao serem revelados, revelavam nossa desigualdade com infográficos. No meu site tem mais do projeto.
Minha página favorita é esse momento mostrando dados sobre mobilidade urbana. Lembro até hoje da conversa com o Ary Moraes (co-orientador do TCC) que rendeu essa ideia.

A faculdade e os primeiros anos no mercado de trabalho me fizeram perceber as desigualdade além dos dados. Em uma situação de segregação, onde raramente a classe média encontra a baixa renda, há pesos e medidas diferentes para quem não é branco ou de baixa renda. Aqui não faço uma queixa, mas uma reflexão para que as nossas mãos sejam um apoio e não um martelo para quem está chegando.

Reflexos

Aqui, boa parte do meu trabalho passa a ser um reflexo da minha história de formação, no final de 2017, fui chamado para um trabalho temporário no jornal Extra, a publicação popular do O Globo, nesse momento me dividia em dois trabalhos (as contas iam continuar chegando depois do fim do contrato) até que fui efetivado semanas antes do fim do contrato.

Aqui reuni condições de sair da comunidade onde morava e fui morar em um bairro de classe média do Rio de Janeiro, esse foi o salto de qualidade de vida de maior impacto da minha vida. Meu dia tinha quatro horas a mais, sem o peso transporte, não racionava meu sono e a sociabilidade era mais frequente.

Gráfico inspirado na visualização criada por Alli Torban.

Vieram as eleições de 2018 e pela primeira vez pude participar da cobertura de um grande evento de forma ativa. Não fiz nenhum infográfico conveniente para colocar no meu portfólio, mas aprendi no calor do momento a importância do planejamento, cooperação e de considerar o aspecto emocional das pessoas. O dia 7 de outubro de 2018 foi um marco na minha carreira profissional.

Uma matéria sobre os 50 anos de Woodstock, baseada em visualização de dados foi uma das minhas últimas colaborações no Jornal O Globo. Hoje vejo algumas decisões equivocadas que fiz em cima da hora nos gráficos.

Em 2019, consegui chegar à redação que eu mais visava trabalhar na época da faculdade: o Nexo Jornal. Foi também a primeira vez que passei em um processo seletivo grande. Além disso, precisava me mudar para São Paulo, com isso entrei em contato com colegas do país todo e com experiências nos EUA e na Europa, o que abriu novas possibilidades de futuro na minha cabeça.

Não por acaso, os meus trabalhos no Nexo com maior destaque estão relacionados com a minha história. O projeto sobre o marco de 100 mil mortes na pandemia está diretamente relacionado com minha vivência nos trens do Rio (assim como o meu TCC). O projeto das mãozinhas, como gosto de me referir a História ilustrada de um saber, foi todo pensado para que pessoas pudessem ler no transporte público, um conteúdo de qualidade em poucos minutos.

Compositoras do Brasil e do Samba foi outro projeto que produzi no Nexo com raízes profundas no meu histórico de vida e de referências que carrego.

Meu ciclo de trabalho no Nexo se encerrou depois de dois anos e meio. Novamente estou trabalhando em uma redação, o JOTA, que despertou meu interesse pelo uso de tecnologia não só no seu conteúdo, mas em todo o seu processo de trabalho. Lá, tenho a missão de criar uma linguagem de infografia e design junto ao time de produtos. Dentro de alguns meses, quem sabe, escrevo sobre as novidades.

Agradeço por você ter lido até aqui. Caso queira fazer contato, sigo ativo nas redes sociais, embora tenho procurado diminuir o meu consumo delas. Estou por aí pelo Behance, Instagram, Linkedin e Twitter. Veja só quanta coisa para dispersar o tempo de qualidade que passamos com quem a gente gosta, que como vocês viram, eu lutei tanto para ter um pouquinho mais.

Esse sou eu e ao lado a representação que fiz para eu mesmo. Tenho um site onde reúno os trabalhos que mais gosto e, em breve, alguns pensamentos.

Abraços!

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