As diferentes identidades da violência

Antoniella Signor
Dava pra Perceber
Published in
8 min readNov 22, 2019

Como a sororidade entre mulheres cis e trans pode combater a violência diariamente

Vocês se conhecem a muito tempo?

“Nos conhecemos há seis anos, mas pra mim, parece que é da vida inteira”. -Márcia

“Para mim também”…- Jaque

Durante esse tempo de amizade vocês sempre se apoiaram ?

“Nossa, e como….”- Jaque

“Nós já moramos juntas. E sempre vivemos ajudando uma a outra”- Márcia

Quais foram os principais momentos que marcaram a caminhada de vocês?

“É muito importante falarmos sobre a sororidade entre as mulheres. Precisamos, ao invés de apontar o dedo e julgar, dar suporte nesses momentos umas para as outras. Temos que estar unidas contra o machismo. Ainda hoje, muitas mulheres culpam-se, e pedem o que a vítima fez para provocar o companheiro…”- Jaque.

“Não podemos pensar assim. Devemos sempre dar suporte e prestar ajuda mútua para que mais de nós se encorajam. Sofri muitos períodos violentos dentro de casa, e no dia em que eu fui fazer a denúncia por exemplo, eu tive que ir para a delegacia e ficar no mesmo corredor que meu ex-marido, que estava algemado. E do lugar dele, me dizia que iria me matar. Várias e várias vezes. Continuou com as ameaças mesmo dentro da polícia. Entao como nao apoiar e dar suporte para essas mulheres que passam por muito medo?”.-Márcia.

A última conversa que eu tive com o meu segundo marido foi com uma arma apontada na cabeça. E por medo eu não chamei a polícia.

Essa é a história de Márcia Longui, empresária, mãe de três filhos e também, de sua amiga Jaqueline Denardin, professora, doutoranda e mulher trans. Jaqueline tem 27 anos. Márcia tem 47. Uma já foi casada por três vezes, sofreu violência física, moral psicológica e a outra vive uma violência velada e institucional, frequentemente. As duas têm realidades e histórias bem distintas, mas se fazem comuns em seus diferenciais.

“Eu comecei a me interessar por questões de gênero e feminismo a partir de 2016, quando eu ingressei no curso de letras. Até então não gostava de estudar tais questões, porque elas mexem com o meu pessoal. A partir daí, também comecei a me observar mais enquanto transexual e assumir a visibilidade que eu tenho”, conta Jaqueline Denardim- professora universitária do curso de letras da Unioeste (Universidade Estadual do Oeste do Parana) e do curso de pedagogia da Unopar de Cascavel, PR.

Para Jaque, as instituições sociais ainda fortalecem as desigualdades. “O primeiro contato que a mulher trans tem é com a família, mas se a pessoa, porém, não tem um bom vínculo dentro de casa, ela já começa a presenciar um processo de exclusão nesse ambiente, que deveria ser o primeiro a lhe dar suporte”.

“Já na esfera religiosa, os padrões são de aceitação e acolhimento, são com o intuito de mudança. Outra instituição social que serve como referência na formação identitária de quase todas as pessoas, é a escola. E aí sim, padrões de segregação, referente a filas, banheiros, professores que não recebem formação continuada para abordar a temática de respeito às diferenças. Então são inúmeras coisas que precisamos mudar”. E é neste cenário que podem se manifestar episódios de violência simbólica, verbal, exclusão, ideológica.

Ela ainda conta que vivenciou violência no ambiente de trabalho. “Sinto que nós mulheres trans precisamos provar a quase todo momento que temos determinado conhecimento, ou que conseguimos desenvolver certo trabalho… E aí quando você prova, as pessoas te reconhecem, como se fosse um bônus. Eu também já participei de entrevistas de trabalho e não fui aceita. Acredito de que foi pelo fato de ser trans. E por mais que naquele momento eu tivesse mais experiência que os outros candidatos, foi contratada uma pessoa cis e eu não”, explica.

Para ela a grande carência que ainda temos é de pesquisas que informem a população sobre quem são essas mulheres, quais suas características, a real inclusão na sociedade “normativa”. A maioria dos documentos que falam sobre transexualidade atualmente, não são escritos por transexuais. “A mulher trans precisa estar a frente do debate”, retrata Jaque.

Como funciona a legislação para as mulheres trans?

A lei Maria da Penha pode ser aplicada sim para mulheres transexuais. Já existem vários precedentes jurisprudenciais para este tipo de crime.

“Quando tratamos da violência doméstica é importante ressaltar que o conceito foi ampliado. A violência doméstica não é aquela que está dentro de casa, com o cônjuge ou companheiro, ela se enquadra em dois fatores: o do parentesco ou companheirismo e também o de afeto. Por isso, a namorada que não mora com o parceiro é acobertada pela Maria da Penha, assim como as mulheres trans”, ilustra a promotora de justiça do juizado de violência doméstica contra a mulher de Cascavel/ PR, Andreia Frias.

Se a mulher trans tiver uma relação afetiva, seja em um relacionamento fixo, ou eventual, e sofrer algum tipo de agressão, a Lei Maria da Penha vai incidir primeiro, porque a violência partiu dentro de uma relação afetiva. Portanto, não importa se a mulher teve um encontro ocasional, ou uma relação esporádica com o(a) companheiro(a), e sofreu agressão tudo isso também é violência doméstica.

O Brasil é considerado o país mais perigoso do mundo para a comunidade trans. Só em 2019, o número de assassinatos em decorrência da transfobia (ódio ou aversão à identidade de gênero) chegou a 123, de janeiro a junho, sendo 65 vítimas travestis e 53 mulheres transexuais, de acordo com relatório do Grupo Gay da Bahia. E aexpectativa de vida das pessoas transexuais no Brasil é de 35 anos, de acordo com o IBGE.

“Eu enquanto mulher trans já sofri muita violência verbal, institucional e violência por não aceitação. Vários alunos já me xingaram pelas costas, me ofenderam diversas vezes. Eu não sofri violência física, mas isso está diretamente relacionado ao fato do local privilegiado em que eu me encontro. Eu posso andar de carro, estou em contato com universidades e escolas então querendo ou nao estou exposta a sociedade. Mas não é a grande realidade da maioria”, conta Jaque.

A Jaque se coloca nesta posição de privilégio, justamente por conta de sua classe social, questões raciais e regionais. De acordo com o Dossiê de Assassinatos e Violência contra Travestis e Transexuais no Brasil, em 2017, a maioria das vítimas eram negras (57%), seguida de brancas (41%), indígenas e amarelas (1%). Em 2018, segundo o documento, houve 163 assassinatos de pessoas trans, com 82% de vítimas identificadas pretas e pardas.

Dados da Organização Gênero e Número de 2014–2017

Em grande parte dos casos, a violência contra a mulher trans acontece no âmbito da prostituição. Em que as vítimas acabam sendo humilhadas, agredidas e muitas vezes mortas. De 2014 a 2017 houve um aumento de de 800% das notificações de agressões contra a população trans, passando de 494 notificações em 2014 para 4.137 em 2017. Nesta mesma pesquisa, o estado do Tocantins foi o que registrou a maior taxa de violência. Esses são os dados divulgados pela organização Gênero e Número, a partir de dados do Ministério da Saúde.

“O crime contra a mulher, em suas diferentes identidades, é um crime de ódio. A mulher trans não menos mulher do que a mulher cis apenas por ter nascido biologicamente diferente do que é condicionado, se ela se sente mulher, se apresenta como mulher, ela pode recorrer sim à Lei Maria da Penha”, retrata Andreia.

A agressão entre quatro paredes:

“Sempre começa com agressão verbal e moral… Nós mulheres somos intimidadas primeiro com palavras. A partir daí nos sentimos intimidadas. Começa com uma discussão boba…Evolui para uma mais séria. Você vai se sentindo desprezada, humilhada e acaba abaixando a cabeça… É nesse momento que vem a agressão, que o homem se sente no direito de agredir”, conta Márcia Longui empreendedora e comerciante.

Márcia explicou sua situação, “o psicológico da mulher casada muitas vezes é abalado pelo parceiro agressivo. Eu estou com 47 anos, já passei por três casamentos. Conheci meu primeiro marido com 14 anos, casei com ele com 16. Tive filhos. Me separei com 23. Depois casei novamente. Tive mais um filho e me separei. Eu vim de uma situação de submissão ao estilo masculino de tratar a mulher”. — “Ao machismo”, completou Jaque.

“Sim, ao machismo. Ele me fez recuar de relacionamentos por um bom tempo. Mas também foi o que me fez lutar. Eu cheguei em um ponto da minha vida que eu passei por muita humilhação”.

Segundo ela, foi apenas depois do último casamento, que a coragem a fez tomar uma atitude. “Denunciei. Não tive a iniciativa antes porque me senti inibida, não sabia como iria pagar as contas sem o apoio do dito cujo, como eu iria dar comida ou criar os meus filhos. Mas eu pedi o divórcio e lutei. Confesso que não foi fácil, mas consegui sair daquela situação”, conclui Márcia.

A importância da denúncia:

“Eu fui casada por um ano, e meu ex-marido me ameaçou de morte com um facão. Eu o denunciei. Ele passou a noite na cadeia, pagou fiança e saiu. Fiz a medida protetiva contra ele e segui firme. Ele ainda responde um processo criminal, pela lei Maria da Penha e por tentativa de homicídio”, explica Márcia.

A mulher por mínimo que seja o ataque à sua dignidade deve denunciar e pedir o auxílio da justiça. Sabemos que a maioria dos crimes contra a mulher ocorre sem testemunhas. Entre quatro paredes. Mas essa mulher não deve ter medo, porque sua palavra tem relevância e mais do que nada: força!” Ilustrou a promotora de justiça Andreia Frias.

Divulgação Djazil.com.br — Disque 180

No dia da agressão conta que ligou para a Delegacia da Mulher, fez a denúncia e representou o pedido. “Muitas mulheres tomam a iniciativa de denunciar, mas na hora de ir até a delegacia prestar queixa contra o agressor, ficam com medo, se desencorajam. Muitas pensam: mas e depois que ele sair? E quando eu precisar dar conta de tudo sozinha?. A mulher chega ao ponto de ir embora, porque perde a coragem naquele momento que pensa em tudo isso”.

Naquele momento, a atitude dela foi rápida e precisa, “Eu já tive uma arma apontada na cabeça. Isso aconteceu comigo com mais idade. Essa força que eu tive, muitas mulheres mais novas ainda não desenvolveram, e são elas os grandes alvos da violência, na maioria das vezes. Que se preocupam com vagas de creche para os filhos, como conseguir um emprego melhor para sustentar a casa, como vão ficar desamparadas sem auxílio. Por isso creio tanto que todas as mulheres devem denunciar”.

A lei pode dar suporte. A sororidade e forte. A mulher tem consigo a união: uma sorte. Lutar contra a violência e não tolerar mais morte.

Antoniella Signor Orlandi — acadêmica de Jornalismo

Conheça o Dossiê de violência contra mulheres lésbicas, bis e trans:

https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/violencias/violencia-contra-mulheres-lesbicas-bis-e-trans/

Conheça a Antra: Associação Nacional de Travestis e Transexuais

Com o tema: “Resistir pra Existir, Existir pra Reagir” a ANTRA teve início em 2018 para chamar a atenção às graves violações de direitos humanos da população de Travestis e Mulheres Transexuais no Brasil. O país que mais assassina essas pessoas no mundo.

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