O endereço de Peggy Olson e uma pergunta que o espectador nunca faz

david f. mendes
David França Mendes
2 min readApr 29, 2016
peggy

No final do primeiro episódio de Mad Men, um embriagado Pete Campbell bate na porta da casa de Peggy Olson. Uma tremenda surpresa, nada no episódio nos dá uma pista de que aquilo poderia acontecer. Peggy acaba de viver seu primeiro dia no escritório da Sterling & Cooper. Pete vem da sua despedida de solteiro, vai se casar em dois dias. Pete aparece na casa dela do nada e nem eu, nem você e nem ninguém que assistiu esse episódio se pergunta “como ele arranjou o endereço dela?”.

Ou você até pode ter se perguntando como ele conseguiu o endereço, mas você deixou de gostar do episódio, deixou de gostar e se envolver com aquela excelente cena porque não viu Pete pedir a Joan ou subornar uma telefonista ou remexer em algum rolodex para achar o o endereço de Peggy? Claro que não. Se isso te incomodou a esse ponto, é porque você já não estava comprando a série.

Um passo importantíssimo para aprender a escrever bons roteiros é entender como os bons roteiros são feitos, e um caminho para isso passa por analisar cuidadosamente as escolhas dos roteiristas. Não só o que eles escolhem mostrar, mas (talvez até mais) o que eles escolhem não mostrar. Aquilo que se chama, em literatura, “close reading”, que é ler uma obra atento as escolhas do autor e como elas afetam o sentido do que se lê, é algo que o roteirista precisa fazer o tempo inteiro com o que ele assiste e lê.

O espectador não quer saber como os personagens dão cada pequeno passo no caminho das coisas que eles fazem. Eu nunca vi, em nenhuma série ou filme minimamente qualificado, alguém perder tempo procurando um endereço. E nunca senti falta e nem nunca ouvi falar de alguém incomodado com isso.

Este exemplo, do endereço de Peggy Olson, é um entre um milhão possíveis. Praticamente qualquer bom roteiro vai ser cheio de coisas assim. E há um motivo para isso: O espectador não quer as partes chatas, aquelas que ele teria que viver porque não há um bom roteirista na sua vida escrevendo elipses que o transportem de um momento importante ao outro. O espectador quer se envolver com o que os personagens fazem, e não se informar sobre eles, confirmar a veracidade dos seus passos. O espectador não é um fiscal.

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david f. mendes
David França Mendes

Autor-roteirista, showrunner, professor de roteiro, escritor. Nós, A Garota da Moto, Corações Sujos, Um Romance de Geração, O Herói Insone.