The Walking Dead nos Ensina uma Lição

david f. mendes
David França Mendes
3 min readFeb 11, 2016
twd

Ninguém prestou muita atenção quando, numa palestra no Rio uns dois anos atrás, Gale Anne Hurd, produtora executiva de The Walking Dead, explicou que uma das suas maiores preocupações no set era evitar que um diretor desse qualquer traço de comicidade a qualquer cena de qualquer episódio. Ela também falou dos cuidados para dar uma textura de realidade à serie: tudo filmado em película, nada de efeitos de computador, “se é preciso incendiar uma casa, incendiamos uma casa”.

A razão desses cuidados, como ela explicou, é não permitir nenhuma fissura na sensação de realidade necessária para a série funcionar para o seu público. Evitar o humor é importante porque, na verdade, nada é mais fácil que aqueles zumbis virarem galhofa. Para que o público leve a sério, quem faz a série tem que levar muito a sério.

Isso me fez pensar no famoso “alívio comico” e em outras tendências a fazer de cada série uma espécie de trivial variado, que a gente percebe nos nossos projetos, brasileiros. Falo tanto do que muitas vezes assistimos no ar quanto do que me chega na forma de projetos. Falo também do próprio processo, entre roteiristas, diretores, produtores e canais. É muito forte uma tendência a querer temperar a dramaturgia: podia ter um pouco de humor, está faltando um pouco de romance, uma pitadinha de sexo?

The Walking Dead é a série de maior sucesso da história das TV a cabo. E vista por 25 milhões de pessoas a cada semana, só nos Estados Unidos. Quem gosta, não perde, roi as unhas até o início da próxima temporada.

Mas há muita gente que não vê e, pior, não veria The Walking Dead de jeito nenhum. Gente que não topa história de zumbi, seja por achar ridículo, por ter medo ou as duas coisas. A verdade é que a série campeã de audiência provavelmente é também uma super campeã de rejeição.

E o que os criadores da série fazem a respeito dessa rejeição? Nada. Eles não fazem nada. Eles não mudam a série para tentar agradar quem não gosta. Pelo contrário, eles apostam tudo naquilo que agrada intensamente quem é realmente o público da série. Eles não traem o projeto artístico da série.

Algumas séries podem ter momentos de humor. Algumas tem que ter esses momentos. Outras não devem, não podem ter. E o que define isso? O efeito que se deseja. Se você busca tensão, muita tensão, você não deve aliviar nada. Se você quer o seu espectador mergulhado no universo da série, emocionalmente, talvez você não precise de humor. Cada caso é um caso. Qual é o seu caso?

O contrário também vale. Quando é que um personagem de comédia deve ser tridimensional? Não havia nada de tridimensional em Seinfeld, Elaine, Costanza e Kramer. Isso não impediu Seinfeld de fazer mais de um bilhão de dólares e, ao mesmo tempo, ser considerada uma série inteligente, brilhante até. Já os personagens de Friends têm uma humanidade, não são tão chapados assim. Pois aí está outra série de um bilhão de dólares. Qual é a receita?

Personagens complexos, tanto quanto alívio cômico, tanto quanto arco de temporada, tanto quanto qualquer outro elemento da dramaturgia, pode-se ter ou não, e a única receita certa é: entender a essência do seu projeto, aprofundar-se nele, e deixar que ele te diga se ali cabe isso ou aquilo.

A lição de The Walking Dead talvez seja a de que não desagradar ninguém é um caminho que te leva longe, bem longe do sucesso. Porque uma série tem que ser muito legal para alguém, e não “legalzinha” para um monte de gente. Porque esse monte de gente não quer “legalzinho” e vai ver mesmo o que for muito legal para cada um.

--

--

david f. mendes
David França Mendes

Autor-roteirista, showrunner, professor de roteiro, escritor. Nós, A Garota da Moto, Corações Sujos, Um Romance de Geração, O Herói Insone.