A cabeça de Socorro Acioli

A Cabeça do Santo, Socorro Acioli. Companhia das Letras: São Paulo. 2014. 176 p.

Dawton Valentim
Dawton Valentim
5 min readFeb 8, 2018

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Nos primeiros dias o sangue e a água que minavam das bolhas arrebentadas nos seus pés chiavam em contato com o asfalto em brasa, inclemente. De tão secos, fizeram silêncio (p. 11).

Não julguemos um livro pela capa, MAS OLHA ESSA CAPA!

No próximo dia 19 de fevereiro, A Cabeça do Santo completa quatro anos de lançamento, pela Companhia das Letras. Escrito por Socorro Acioli, o livro foi desenvolvido numa oficina de roteiros de Gabriel García Márquez (sim, o próprio), em 2006, ano em que a escritora decidiu viver de literatura e estudar para isso. A oficina Como contar um conto também dá nome a um livro, que é transcrição de uma das edições do curso. O livro repercute até hoje, ainda sendo fácil de encontrar nas primeiras estantes de algumas das mais movimentadas livrarias de Fortaleza.

Mas, antes do livro, a escritora.

Socorro é cearense, tanto quanto o próprio A Cabeça do Santo e não deixa de ser uma forma de resistência enfatizar isso. Há alguns anos, por conta de uma reforma curricular do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará — UFC, a discussão sobre a (des)valorização de escritores e da Literatura Cearense voltou à baila e, embora adormecida, ainda sustenta alguns questionamentos, como: quantos livros cearenses (ou de autores nascidos onde você vive) você já leu?

Formada em Jornalismo e mestre em Literatura pela UFC, tem doutorado em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense, já foi curadora da Festa Literária de Aquiraz, escreve para o jornal O Povo e coordenará uma especialização de escrita literária, em 2018. O primeiro livro da grande lista, O Pipoqueiro João (Nação Cariry Editora), foi publicado aos oito anos de idade, em 1984. Desde então, foram mais 10 livros infanto-juvenis, três juvenis, uma adaptação, dois ensaios biográficos, dez traduções e o livro que nos interessa aqui, A Cabeça do Santo.

Vídeo do canal Vá Ler Um Livro sobre A Cabeça do Santo.

Apesar de ter circulado na Inglaterra, nos EUA e na França, A Cabeça do Santo me tocou por ser um livro escrito, muito mais do que em língua portuguesa, em cearensês. É aconchegante reconhecer a poesia da própria linguagem na folha impressa. O cenário também não poderia ser mais cearense, uma vez que se passa entre Juazeiro do Norte e proximidades de Canindé. Impregnado por um realismo fantástico bastante influenciado pelo Gabo, o livro tem passagens que beiram o Naturalismo, como o da citação que abre este texto, em que é possível sentir o peso do sol que Samuel, o protagonista, carrega consigo.

Samuel, aliás, é movido pela promessa que fez à mãe, à beira da morte, de acender uma vela aos pés de três grandes estátuas de figuras religiosas (duas delas bastante conhecidas no nordeste: Padre Cícero, em Juazeiro do Norte, e São Francisco, em Canindé) e (re)encontrar seu pai, que havia ido embora. O rapaz, ao contrário da mãe, não é religioso, mas parte no cumprimento da promessa (ou da vingança, fruto do ódio pelo pai), fazendo uma travessia que, para mim, é uma das partes mais lindas do livro. Lembra bastante Vidas Secas e O Auto da Compadecida.

❝Tudo ficou pelo caminho: juventude, alegria, pedaços de pele, mililitros de suor, quilos do corpo, e os parcos e velhos fios de esperança de que houvesse alguma coisa invisível que ajudasse os homens sobre a Terra. As esperanças nunca foram suas, eram de Mariinha, ele as usava por empréstimo em casos raros. Naquele momento, Samuel não tinha fé nenhuma nas coisas do espírito❞ (p. 13).

Chegando a Candeia, uma cidade quase fantasma, ele é hostilizado pela avó, atacado por cães e se abriga no que dá o título ao livro: a cabeça enorme da estátua de Santo Antônio cuja construção não deu certo, uma espécie de caverna em que Samuel passa a ouvir as preces das mulheres que ainda restam na cidade, que rezam para casar. Em pouco tempo, o rapaz fica conhecido como menino casamenteiro e reaviva a cidade, contrariando vontades políticas. Aliás, é aqui que entra uma crítica (ou observação social) de Socorro que não vi ser mencionada em outros textos.

Acioli constrói uma narrativa que vai, pouco a pouco, ao encontro do extraordinário para quem não conhece a realidade do sertão cearense, mas completamente possível (e real) para quem conhece. Estátuas gigantes, fanatismo religioso, miséria, exploração da fé alheia e coronelismo são só alguns dos pontos da realidade sertaneja que a autora leva para sua narrativa e que passaram despercebidos de alguns críticos, em 2014. Ou seja, mesmo sendo um livro importante por motivos literários universais, A Cabeça do Santo se revela ainda mais significativo por falar de nordestino para nordestino, de representar o que tá perto, o que somos.

“Peguei um caderno onde eu anotava ideias de histórias pra escrever e tinha colado uma notícia sobre a cabeça do santo lá de Caridade que tá lá o corpo em cima do morro e a cabeça no chão até hoje. A matéria dizia que os moradores estavam muito revoltados com a situação porque a cabeça do santo tava virando banheiro, motel e, inclusive, um alguém já tinha morado lá. Pensei: ‘essa é a minha história!’”, diz Socorro em entrevista ao Vós.

Embora eu não ouse (nem caiba a mim) ser tão criterioso quanto o professor de literatura Luís Fischer foi, em crítica na Folha de S.Paulo, preciso dizer que não gostei muito da pressa que senti na parte final do livro, para que o desfecho acontecesse mais rapidamente do que era preciso, ou de algumas reviravoltas que, a meu ver, destoaram do tom geral da narrativa. Contudo, fiquei marcado pela escrita sertaneja, forte e poética de Acioli e pelo valor político e cultural do livro, sem mencionar o humor cearense que desponta de algumas tiradas da autora, como o nome da personagem Madeinusa. Ou seja, não senti qualquer prejuízo à experiência de leitura causado por quaisquer inconsistências.

A Cabeça do Santo é de 2014, mas permanece atual, especialmente considerando o sertão, onde o tempo passa devagar que é para não se queimar na quentura do sol. Dá pra ler um trecho do livro clicando aqui.

Gratidão e até!

Originally published at serlinguagem.wordpress.com on February 8, 2018.

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Dawton Valentim
Dawton Valentim

Crônico por natureza. Linguista, revisor e professor. Em todo canto: @dawtonv