A caminho de uma FLIP obscena

A 16ª Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) homenageará Hilda Hilst

Dawton Valentim
Dawton Valentim
5 min readFeb 6, 2018

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O Blog Ser Linguagem, em sua terceira transformação desde 2012, está se construindo. Aos poucos, vamos abrindo quartos, organizando salas, fazendo a cozinha cheirar. Aos poucos, os azulejos vão sendo trocados, as cortinas lavadas, a luz do sol permitida. Com algumas seções (compartimentos fixos do blog) já estabelecidas, como a #SerLeitura e a Sala de Visitas, hoje convido você a embarcar em nossa primeira série (conjunto temático e eventual de publicações), chamada A Caminho da FLIP.

A Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) acontece anualmente, desde 2003, e é realizada pela Associação Casa Azul, homenageando, a cada ano, um nome da literatura brasileira. O evento já está consolidado no calendário nacional como um dos principais festivais literários do Brasil e da América do Sul. Para a cidade de Paraty — RJ, cujo calendário não para, a festa é uma das grandes frentes de atuação do comércio e, sobretudo, da cultura local. A 16ª edição da Festa será a minha terceira. Fui à FLIP de 2014, que homenageou Millôr Fernandes, e à de 2017, que homenageou Lima Barreto (até escrevi sobre ela aqui).

Em 2018, a FLIP terá, pelo segundo ano consecutivo, a curadoria da jornalista Joselia Aguiar e homenageará a escritora paulista Hilda Hilst. Uma coisa dificilmente aconteceria sem a outra. Joselia foi a curadora da edição de 2017, que homenageou um escritor negro e marginalizado pela literatura mainstream, Lima Barreto, e que marcou o festival como o mais representativo de sua história, com o maior número de pessoas negras e com o maior número de mulheres palestrando. A FLIP de 2018 é apenas a terceira de 16 edições a ser comandada por uma mulher e a homenagear umA escritorA. Três de dezesseis. Antes de Hilda, Clarice Lispector (2005) e Ana Cristina Cesar (2016) estão no rol de homenageadas.

É sintomático que o evento tenha dado uma guinada em direção das discussões mais intensas do atual momento do país quando seu orçamento encolheu à sombra dos efeitos da crise financeira que corta, antes de tudo, da arte e da educação. Apesar de menor fisicamente, a FLIP de Joselia Aguiar se agiganta por se preocupar com o diálogo entre a literatura, o espaço e as pessoas.

Foto: João Bertholini / Reprodução FLIP

“Mais do que nunca é preciso aproximar o leitor da literatura e da arte, para tornar nosso ar mais arejado, ampliar nosso horizonte e aprofundar o entendimento das pessoas e do mundo”, diz Joselia ao site da FLIP.

Hilda de Almeida Prado Hilst

Nascida em 21 de abril de 1930, em Jaú — SP, Hilda era filha única por parte de pai e tinha um irmão por parte de mãe. Em 1932, seus pais se separam e Hilda, com sua mãe e irmão, muda-se para Santos. Aos 18 anos, ingressa na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo do Machado), onde conhece Lygia Fagundes Telles, escritora e grande amiga. Antes de se formar, em 1952, publica dois livros, Presságio em 1950 e Balada de Alzira em 1951.

Presságio VI

Depois da leitura de Carta a El Greco, do escritor grego Nikos Kazantzakis, Hilst se retira da vida agitada de São Paulo, em 1964. Segundo o presidente do Instituto Hilda Hilst, Daniel Fuentes, a escritora percebeu que era preciso abrir mão da vida “mundana e cercada de festas” para produzir sua obra. Passando a morar próximo de Campinas, a escritora constrói um recanto chamado Casa do Sol (1966), hoje sede do Instituto Hilda Hilst e criado para ser um espaço de inspiração e criação artística. Hilda faleceu aos 73 anos, em 2004, deixando uma obra imensa (clique aqui para ver a lista) que, pouco a pouco, vai sendo descoberta por quem ela mais queria: o público.

“EU QUERO SER LIDA”

“Eu vi que só escrevendo pornografia é que eu seria comentada. Por isso que eu escrevi a Lori Lamby. O que é muito engraçado, né?!”, Hilda para o documentário Hilda Humana Hilst.

Fonte: Reprodução FLIP

Hilst teve sua obra reconhecida por seus pares e pela crítica, mas era o reconhecimento do público que a angustiava. Ou melhor: era o baixo reconhecimento do público. Apesar de brilhante, a literatura hilstiana nasce complexa e, por que não dizer, difícil. Sabe aquela história de que a disposição para a leitura, hoje em dia, é baixa? A situação não era tão melhor há alguns anos. Irritada, a escritora se lançou numa fase obscena (ou pornográfica ou erótica), desafiando o mercado editorial, a crítica e, sobretudo, os leitores. A trilogia O Caderno rosa de Lori Lamby, Cartas de um sedutor e Contos d’escárnio — Textos grotescos foi a parte central dessa fase, com outros títulos, como A obscena senhora D., que chocaram o país que até hoje tem medo de falar honestamente sobre sexualidade e corpo.

Foi o momento em que a paulista decidiu dar ao mercado editorial, como diz em entrevistas, uma banana, partindo para o que seria, a princípio, uma escrita de massa, mas acabou se revelando uma nova maneira de dizer o complexo, afinal era ela. É dessa fase, a última de Hilda, fruto do cansaço da escritora com o encalhe de seus livros no Brasil (uma vez que a obra ia bem no exterior) e elogiada em segredo por críticos que não tiveram a coragem de publicar os elogios em seus espaços nos jornais, que surge a provocação do título deste texto — A caminho de uma FLIP obscena. Cabe a ressalva lógica: nem só de obscenidades se fez a obra de Hilda Hilst, “que fez sua literatura em torno de temas como o amor, a morte, Deus, a finitude e a transcendência”.

Fato é que, de tantas das predições que a “obscena senhora” fez, a que diz que sua obra seria “descoberta” 10 ou 20 anos depois de sua morte (em 2004) é uma das que se pode observar acontecer. Algumas de suas obras, das quais muitas foram publicadas pelo editor Massao Ohno, foram relançadas pela Editora Globo em 2005 e ganharam certa sobrevida. Em 2015, na 22ª edição do Projeto Ocupação, do Itaú Cultural, a escritora surge na exposição Ocupação Hilda Hilst, cujos registros podem ser vistos nessa playlist. E falando em playlist, a seguir, encerro este texto inaugural da primeira temporada da série “A Caminho da FLIP” com uma lista de vídeos sobre Hilda Hilst que usei como referências.

Gratidão e até!

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Dawton Valentim
Dawton Valentim

Crônico por natureza. Linguista, revisor e professor. Em todo canto: @dawtonv