#SERLEITURA

A matéria-prima de Martha Batalha é a nostalgia — e a Zona Sul

Dawton Valentim
Dawton Valentim
Published in
5 min readAug 13, 2018

--

Nunca houve um castelo, Martha Batalha. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. 256 p.

❝Nada teria acontecido se Johan não tivesse conhecido Brigitta, e se Brigitta não fosse tão peculiar. Se não tivessem que mudar de continente e construir um castelo. Se três meninos louros tivessem passado a infância como seus pais e avós, em vez de se tornarem estrangeiros na cor da pele curtida (p. 13–14)❞.

Nunca houve um castelo não é uma história só e isso faz a tarefa de escrever sobre ele algo que sempre me deixará com a sensação de ter faltado alguma coisa. Em seu segundo livro, Martha Batalha extrapola sua intensa habilidade de construir grandes emaranhados narrativos que vão se entrelaçando com calma, sem grandes surpresas, mas com muita potência. Não é preciso muito descuido para que nos esqueçamos de que a autora escreve, na verdade, uma mentira, uma ficção. Sua linha do tempo, mais complexa agora do que foi em A vida invisível de Eurídice Gusmão, seu primeiro livro, é bem cuidada e deixa possível visualizar as cenas, os diálogos e os cantos do Rio de Janeiro que a narração descreve, apesar de exigir certa suspensão de descrença por parte de quem lê para não se incomodar com aparentes inconsistências.

Em A vida invisível de Eurídice Gusmão, Martha demonstrou um estilo narrativo positivamente novelístico, com um grande número de personagens, uma quase divisão de núcleos, desfechos nítidos e lineares e acontecimentos cotidianos. Acrescente a isso o Rio de Janeiro nobre ou de classe média como principal cenário e os percalços de uma família em plena ascensão social e você terá, mais uma vez positivamente, algo muito próximo do roteiro de novelas das oito de alguns anos atrás, quando a Globo ainda não tentava fazer sua teledramaturgia parecer plural. Reforço o “positivamente” porque sei que os comentários que faço podem parecer um rebaixamento do texto da autora brasileira, que foi primeiramente recusado por editoras nacionais, mas a intenção é justamente outra: elogiar a construção envolvente do texto da autora.

Assim como foi importante comentar como Fernanda Torres escreveu , seu primeiro romance, para entender sua transformação narrativa em A glória e seu cortejo de horrores, o segundo, entender como Martha Batalha concebeu A vida invisível é fundamental para compreendermos seu processo de escrita em Nunca houve um castelo. A história também se passa no Rio de Janeiro; ainda é uma novela das oito com tudo o que tem direito, de reviravoltas típicas até tramas beeeem “white people problems”; consiste numa profusão de personagens ainda maior (são facilmente mais de 20, entre protagonistas e secundários); se movimenta, em grande parte, por meio de mergulhos profundos na história de cada personagem, com maiores e menores graus de apagamento (basta comparar o “tempo de tela” que tem Dalvanise, a empregada de Estela e Otávio, e Beto, estudante e ex-preso político); e mantém uma sutileza irritante ao suscitar possíveis críticas sociais à luz de uma voz narradora onisciente que não parece ser lá muito onipresente.

Outras similaridades entre os dois livros da autora me chamaram atenção, mas, dessa vez, não tão positivamente. Se, no primeiro livro, era possível não ter certeza que certas escolhas narrativas poderiam revelar ou resultar em aspectos problemáticos em vez de configurarem crítica social sutil, quando acontecem no segundo livro, reincidentemente, o benefício da dúvida começa a falhar. Vou tentar ser menos abstrato. Em A vida invisível de Eurídice Gusmão, a construção de personagens femininas submissas ou cujo caráter dependia direta ou indiretamente de seus relacionamentos com homens podia passar, embora mal, como retrato de um tempo passado. Com mais esforço ainda, o nítido apagamento de discussões sobre tensão racial e o silenciamento de personagens negras também, o que a própria Martha chegou a afirmar. Contudo, quando esses mesmos traços se repetem num segundo livro quase que identicamente ou de forma mais visível, incomoda, e não no sentido “incômodo que chama atenção para um lado podre do nosso país”. Não. Incomoda no sentido de parecer uma perpetuação ou uma falha de visão tendo em vista o próprio lugar de fala da autora. Nunca houve um castelo é uma narrativa branca demais, rica demais, zona-sulista demais. Isso pra não problematizar as mulheres dessa história, cuja problematização deixo por conta de Luana Werb:

As semelhanças entre primeiro e segundo livros alcançam personagens, como Guiomar que parecia com Zélia ou como Estela que parece uma versão mais jovem de Eurídice. Mas, afinal, o que Martha Batalha traz de realmente novo em relação à sua primeira obra é a extensa e notável pesquisa histórica e o fôlego para uma linha do tempo que abarca, no mínimo, três gerações de cariocas. A história começa por volta de 1904 e vai, nas cenas “pós-créditos”, até meados de 2008. Johan e Brigitta Jansson, suecos e casados, mudam-se para o Brasil, onde ele vem ser cônsul. Juntos, ajudam a “fundar” o bairro de Ipanema, no Rio de Janeiro, construindo ali um castelo que não existe mais (mas que tem foto no livro, porque, sim, já existiu). Os dois são só algumas das personagens que Batalha toma de empréstimo da vida real para seu mundo fictício, como também Freud e Laura Alvim. O livro é dividido em duas partes, em que a primeira traz os cinco primeiros capítulos bem amarrados e nos levam até a juventude dos filhos de Johan e Brigitta, com vários quês de realismo fantástico. A segunda parte abriga os onze capítulos restantes, trazendo a geração que mais acompanharemos, a terceira, encabeçada pelo rapaz “louro de olhos azuis” e desejado por toda a zona sul Otávio Jansson.

Talvez tenha sido o que a autora trouxe de novo que tenha me cativado apesar dos desapontamentos que mencionei algumas linhas acima. É preciso dar destaque para a crueza com que ela retrata os períodos mais pavorosos do regime militar, nos fazendo percorrer a formação de um torturador e a deformação de seus torturados; o pavor do surto de AIDS nas décadas de 1980 e 1990; o início das discussões feministas no país e a quem primeiro elas chegaram; a ocupação desordenada da cidade do Rio de Janeiro, ainda que vista do alto de uma cobertura de 300 m²; e o capítulo nove, talvez o meu preferido. O fim de Nunca houve um castelo é calmo como o fim de uma novela poderia ser. As coisas tendem a acabar (talvez isso seja um spoiler) como acabariam se não fossem ficção. Talvez por isso o sentimento que o livro tenha me deixado seja tão parecido com o que senti quando encerrei a série Six Feet Under ou quando assistia ao último capítulo de alguma novela favorita anos atrás, na infância. Martha Batalha nos leva para reflexões tão aflitas quanto reais que começam com “e se eu tivesse feito de outro jeito?”, usando uma nostalgia construída ao longo de 256 páginas, tal como fez também em A vida invisível de Eurídice Gusmão.

O que você teria feito diferente?

Outras experiências de leitura:

Originally published at http://serlinguagem.wordpress.com on August 13, 2018.

--

--

Dawton Valentim
Dawton Valentim

Crônico por natureza. Linguista, revisor e professor. Em todo canto: @dawtonv