Fernanda Torres e seu cortejo de personagens masculinos

Dawton Valentim
Dawton Valentim
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5 min readApr 17, 2018

A glória e seu cortejo de horrores, Fernanda Torres. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 216 p.

❝Eu podia sentir o frisson da plateia com a minha presença, os silêncios atômicos. Esperava a tosse, dominava o tempo certo das gargalhadas, dos suspiros, minha voz a abraçar o teatro, preenchê-lo, como se fosse matéria concreta. Que saudade, meu Deus❞ p. 101.

A capa é ou não é uma lindeza?

São 5h47 quando começo a escrever esta experiência de leitura. Vindo de uma noite insone, comum do lado de cá da conversa, não escrever agora me colocaria sobre um triste risco de perder a chance de aproveitar a sensação que o segundo romance da atriz e escritora Fernanda Torres me deixou.

Fernanda foi a autora que abriu as portas da seção #SerLeitura aqui no Ser Linguagem, com o romance Fim (Companhia das Letras), seu primeiro. Na resenha dele (clique aqui para ler), justifiquei o retorno a um livro de 2013: preparar o espírito para o segundo romance da autora, publicado em 2017, e refrescar a memória para poder compreender a transformação literária pela qual Torres deverá ter passado. Acertei no gesto. A glória e seu cortejo de horrores (Companhia das Letras) nos apresenta uma escritora ou mais amadurecida ou mais à vontade com a palavra escrita e com uma marca estilística já consolidada.

A glória nos presenteia com Mario Cardoso, um ator que divide com o leitor suas trajetórias pessoal e profissional, que se cruzam em várias alturas. Recorrendo mais uma vez a personagens, enredo e cenário principal cariocas, Fernanda Torres está ainda mais em casa em seu segundo romance. Compartilha com seu protagonista, para além do ofício de atriz, muitas das desventuras pelas quais o personagem passa, de modo que é difícil dizer se Fernanda empresta a Mario suas tragicomédias ou se é ele que as empresta a ela, para que as escreva. O que poderia ser ponto de má crítica, a meu ver, é algo para se elogiar. Escritora e atriz se aproveitam uma da expertise da outra para construírem, juntas, um romance essencialmente metalinguístico e, por que não dizer, satírico, remontando episódios hilários da carreira de Fernanda Torres e confessados em entrevistas de divulgação do livro.

“Eu adoro personagens falhos, pequenos, mas que, pelo fato de terem vivido, têm grandeza”, disse Torres em entrevista a Lázaro Ramos.

Mario Cardoso está para lá da meia idade quando nos inicia em sua vida. Amargando um ostracismo inaceitável para quem já foi galã e vilão de novelas com 90% de audiência da Metro, a maior estação de tevê do país (lembra alguma “estação” da vida real?), o ator está decidido a produzir e atuar em uma montagem de Rei Lear, um projeto que conta com o apoio de leis de incentivo do Ministério da Cultura. Descaminhos levam Mario a largar o teatro e enfrentar um papel tosco numa novela bíblica de uma emissora vice-líder e uma campanha publicitária constrangedora. Sim, o livro, que só me pegou depois de algumas páginas, vai aos poucos revelando seu compromisso não só com a história do teatro no eixo Rio — São Paulo e até mesmo do Brasil, mas também com a atualidade, abordando discussões políticas sobre leis de incentivo à cultura e tendências atuais de produção televisiva. “Compromisso”, aliás, é forte; talvez “efeito colateral” caiba melhor.

Talvez por esse viés histórico que serve como pano de fundo e pelas “paródias” que o texto apresenta (como a Globo sendo chamada de Metro), A glória e seu cortejo de horrores chegue perto de ser um roman à clef, ou seja, um romance que fala de pessoas e instituições reais com pseudônimos ou nomes trocados. Embora isso se encaixe nalgumas partes do texto, Fernanda Torres já esclareceu que a história de Mario Cardoso é um retalho de situações reais ou potencialmente possíveis mais do que o retrato de pessoas e instituições. Mesmo assim, é de admirar a sutileza com que a escritora, ou melhor, o ator Mario Cardoso remexe numa das feridas mais doídas da Rede Globo, ou melhor, da Metro, quando relembra o apoio dela à ditadura civil-militar.

‘“Mas bastou cruzar a catraca na recepção para cobiçar um cargo de operário-padrão na majestosa fábrica. […] Que se dane o preconceito, a acusação de que a rede de comunicação colossal se concretizara para servir aos interesses do regime. Tratava-se de uma monocultura da mídia, sem concorrência capaz de lhe fazer sombra, isso era verdade, e que agia como o diário oficial de uma república autoritária. Por outro lado, grande parte dos escritores, atores e diretores que sobreviveram às perseguições políticas havia encontrado um porto seguro naquelas corredores” (p. 159–160).

O livro é construído em capítulos não nomeados nem numerados, sem sumário, e não poupa referências eruditas, quase todas voltadas ao teatro e ao texto dramático, como o próprio Shakespeare ou Tchekhov. São referências que denunciam o lugar de fala não só do protagonista, mas principalmente da autora, nascida e criada no universo da dramaturgia. A maior parte do texto é dividida em duas linhas narrativas, ambas puxadas por Mario Cardoso: enquanto uma nos conta o que acontece no presente ou perto disso, outra dá conta do que aconteceu no passado, por meio de digressões que dão sustento às compreensões necessárias ao presente. Em certo ponto da história, o bifurcamento vai se encerrando num único e marcante ponto de virada narrativo.

Em comparação com Fim, Fernanda Torres assume de vez seu talento inegável para a construção de personagens masculinos absurdamente verossímeis. É possível sentir o cheiro das descrições de seus homens bem como o peso de seus ranços patriarcalistas e machistas. Aliás, uma vez que suas histórias são contadas, majoritariamente, pelos olhos deles, fica fácil compreender a coadjuvação assumida por suas personagens femininas, por vezes objetificadas ou diretamente associadas à sensualidade e ao sexo propriamente dito. Em A glória, destaco Raquel, atriz, e Greta, travesti. Na tentativa de explicar seus homens, Fernanda Torres conta que, sendo atriz, ela procura ser o outro para se distanciar de si, especialmente num livro que vai falar da vida de um ator. É um lindo exercício de alteridade.

“É horrível quando é confissão”.

Quando li o capítulo que começa na página 85, pensei “vai ser difícil outra parte desse livo me emocionar assim; eis meu preferido”, mas há as últimas páginas. Ainda em relação a Fim, é preciso dizer que a autora conseguiu, em A glória e seu cortejo de horrores, dar uma redenção a seu protagonista que faz toda a diferença à narrativa. É um desfecho lindo a um livro que tinha tudo para ser apenas trágico.

“A vida separa as pessoas, como separa a gente de nós mesmos” p. 157.

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Dawton Valentim
Dawton Valentim

Crônico por natureza. Linguista, revisor e professor. Em todo canto: @dawtonv