Na pele de Lázaro Ramos
“Seu lugar é onde você sonhar estar”
Na Minha Pele, Lázaro Ramos. Objetiva: Rio de Janeiro. 2017. 147 p.
❝Ter passado a conviver com pessoas que não refletiam sobre o racismo no seu dia a dia me fez buscar argumentos para inserir esse tema nas conversas. Queria que elas percebessem o que para mim era tão claro. Queria dividir sem medo minha sensação de entrar num restaurante e ser o único negro no lugar. Queria mostrar as riquezas da cultura afro-brasileira, da qual eu tanto me orgulho e que é tantas vezes ignorada❞, p. 12.
Há um mito africano que dá conta de um ritual imposto por traficantes de pessoas a negros escravizados. Os homens capturados tinham de dar nove e as mulheres tinham de dar sete voltas ao redor da Árvore do Esquecimento, para que se esquecessem de onde partiam, quem eram, em que acreditavam, o que estavam sendo forçados a abandonar, para que sequer pudessem amaldiçoar seus captores. A Árvore do Esquecimento, hoje, é um monumento construído pela UNESCO, em Benin. O mito metaforiza a separação de escravizados de mesmas tribos, culturas e dialetos em “lotes” diferentes, para que não se entendessem, para que não se unissem, para que não tivessem força.
Pesado, né?! Também senti. Essa referência está na pagina 65 do livro de Lázaro Ramos sobre o qual conversaremos. Encontrar no Lázaro um escritor foi uma surpresa que me tomou durante os preparativos para ir à 15ª Festa Literária Internacional de Paraty — FLIP, que homenagearia Lima Barreto. Costurando a programação do evento com performances e palestras, o ator e apresentador levou ao público, depois de publicar um livro infantil (Caderno de rimas do João, 2015), uma espécie de relato autobiográfico surgido a partir da problematização da tensão racial em que o Brasil reside chamado Na minha pele. O título não podia ser mais apropriado.
“Sempre que eu falar de mim neste livro, estarei também falando sobre você. Ou, ao menos, sobre essa busca saudável por identidades”, p.13.
Na minha pele começou a ser escrito em outubro de 2007, dez anos antes de ser publicado, e surgiu de uma provocação da editora Objetiva a Lázaro: por que não falar de sua experiência como ator negro? Era completamente o oposto do que Lázaro pensava em escrever. Antes de tudo, por remeter a um tom autobiográfico que o autor, insistentemente, tenta afastar ou denunciar ao leitor; depois por tocar numa questão já enfadonha para um ator que passou a vida respondendo a perguntas do tipo “Sendo um ator negro o que acha dessa coisa toda de racismo?” e “Como é fazer um médico, arquiteto, surfista, Roque Santeiro, Boêmio da Lapa, padre, gay ou seja lá quem for… negro?” (p. 10). Foi depois de muita ponderação que o eterno Foguinho da novela Cobras e Lagartos percebeu a importância de, sim, falar de sua pele, mas tendo o constante cuidado de deixar nítido que sua história é uma exceção que confirma a regra.
“A grande escritora Conceição Evaristo me ensinou algo que nunca vou esquecer. Ela diz que temos visto nos últimos tempos pessoas negras de estratos populares chegarem às universidades, a postos de comando no mercado de trabalho etc. São histórias exemplares, mas também perigosas. Devemos fazer uma leitura de que somos exceção. Quando nos prendemos muito a esse elogio da história pessoal (‘ela veio da favela e conseguiu’), corremos o risco de dizer que o outro não conseguiu porque não quis, e isso não é verdade. A exceção simplesmente confirma a regra”, p. 63.
A regra que a história de Lázaro Ramos confirma é a de ainda ser diversas vezes mais difícil a uma pessoa negra, no Brasil, acessar espaços de “privilégio”, como a TV, a Aldeota, o Iguatemi, e a universidade. E é essa história, a de exceção, que serve como fio condutor para a construção de um texto que se equilibra em duas linhas narrativas: numa, Lázaro conversa diretamente com o leitor (de maneira pouco habilidosa, inclusive, em algumas páginas); noutra, ele estabelece reflexões a partir de memórias que passamos a acompanhar e que seguem uma linearidade cronológica (infância, adolescência, juventude e vida adulta).
Depois de um prólogo que busca desarmar as expectativas do leitor, explicitando uma despretensiosidade inicial com que Lázaro pretende seguir e um quê de conversa sintetizada na frase “estamos vestindo a mesma pele”, a viagem começa na Ilha do Paty, a 72 km de Salvador, onde o autor nasceu. Na verdade, a viagem começa com uma pausa, um recado que Lázaro deixa a Célia Maria do Sacramento, sua mãe já falecida, a mesma pessoa a quem ele recorre ao fim do livro e que permeia inúmeras passagens de seu relato, não à toa.
Na Ilha do Paty, temos acesso a uma infância fundamentada sobretudo no afeto. Não sobra muito espaço para discriminação num lugar em que ser negro é simplesmente ser. É ao sair da ilha que Lázaro começa a se confrontar com uma realidade menos amistosa, especialmente na casa em que sua mãe trabalhava como empregada doméstica, onde a patroa, branca, fazia questão de delimitar até onde o corpo negro do filho da empregada poderia ir. Daí em diante, somos confrontados com realidades extremamente próximas, como ser um dos únicos negros da escola particular ou ser preterido naquela fase dos namorinhos adolescentes. Lázaro passa a nos contagiar com uma pergunta que tenho me feito frequente e descontroladamente: quantos negros estão aqui? Nessa cafeteria, nessa livraria, nesse teatro, nesse shopping, nessa sala de aula, quantas negras estão aqui?
“Na ilha, o conceito de beleza era o nosso. Cresci com minha mãe e minhas tias dizendo que eu era lindo. Não tinha ideia se seria discriminado ou se as minhas escolhas ficariam mais difíceis por causa da cor da minha pele”, p. 27
Neste ponto, é importante que se diga que Na minha pele não é exatamente um livro para pessoas negras (apesar de ser uma leitura fundamental para elas), ele é um livro para pessoas brasileiras, mesmo as não negras. Enquanto aquelas podem encontrar identificação e empoderamento, essas podem encontrar motivos para se engajarem na discussão e na busca por soluções para uma questão que é complexa e é de todas. Enquanto aquelas encontram seu lugar de fala, essas são constantemente convidadas a reconhecerem seu lugar de escuta. Esse papel de reconhecimento — quer seja da negritude, quer seja da branquitude — é, inclusive, um dos mais poderosos do livro.
Do reconhecer-se negro, acompanhamos Lázaro no reconhecer-se ator, já na juventude, enfrentando outras facetas da discriminação, tais como a limitação a certos papéis, a abordagem policial “diferenciada” ou o desafio do cultivo do amor próprio. Enfrentamentos que encontraram em espaços como o Bando de Teatro Olodum lugares de preparação para o que viria na vida adulta, em voos mais altos e fora da Bahia.
“Ou vocês nunca repararam na cor da pele de quem é ‘criança’ e de quem é ‘menor’ nos textos da imprensa?” p. 49
Na minha pele é atual, fácil de ler e extremamente conectado às discussões que estão nos trending topics da internet. O texto aproxima o ator de novelas e o apresentador do programa Espelho (Canal Brasil) de nós, que estamos por trás de avatares do Facebook, discutindo o que é ou não apropriação cultural. O livro, repleto de referências, acaba sendo uma pequena enciclopédia (apesar de não ter sumário) importante a todos que queiram começar a problematizar a questão racial no Brasil e nos coloca em contato com novas vozes, que estão à distância de um ou dois cliques. É preciso destacar o tom crescente que Lázaro desenvolve, indo de uma conversa afetuosa, na primeira parte do livro, a uma convocação mais assertiva, na segunda parte, ao debate e, sobretudo, à escuta. A qualidade, aqui, não é exatamente literária, mas documental e explica o sucesso de vendas.
“A partir daqui, minhas memórias continuam, mas quero que elas sejam meros pretextos para seguirmos outro fio condutor. Quero falar mais de políticas afirmativas, de conflitos de opinião e das dores do racismo. Talvez faltem piadas e poesia. (…) Portanto, encerre a leitura aqui ou siga por águas um pouco mais incômodas”, p. 71
É nessa segunda parte, a partir da página 69, que Lázaro Ramos discute os desafios de ser pai de crianças negras e de construir um imaginário de representatividade, a relação com sua esposa, Taís Araújo, a solidão da mulher negra (preservando a noção de lugar de fala), a potência dos afetos e o cansaço da militância. Entrar de mente e coração abertos é uma dica clichê. Se eu puder sugerir algo, sugiro que você entre acompanhado de bloco de anotações ou post-it para registrar todas as notas de rodapé que você desejar consultar.
Para entender depois de ler o livro: este texto é reflexo de um dos pedaços do espelho entre Orun e Aiyê, mostrando apenas a imagem do lugar em que ele se encontra, sendo apenas uma parte da verdade.
“Comece assistindo ao TED ‘O perigo da história única’, de 2009, de Chimamanda Ngozi Adichie, depois veja o de Clint Smith, de 2014, intitulado ‘O perigo do silêncio’. Sei que vocês sairão motivados, então passem para as leituras. Comecem por O olho mais azul, de Toni Morrison; passem para A negação do Brasil, de Joel Zito Araújo; se debrucem sobre Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. Não deixem de lado as novas vozes, como Fábio Kabral”, p. 144–145.