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O beijo no asfalto ainda seria notícia hoje

Dawton Valentim
Dawton Valentim
Published in
5 min readMar 12, 2019

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❝Não é justo que um beijo inicie uma guerra / Que ser diferente torne a vida severa / Mas com muita poesia / Seguimos / Em plena harmonia❞, A cruz, Renato Enoch.

Pra ler ouvindo…

1961. Um homem é atropelado no centro do Rio de Janeiro. Agonizando, pede um beijo à primeira pessoa que o socorre: Arandir. Dois homens se beijam na Praça da Bandeira e viram manchete, “O beijo no asfalto”. Assim, começa uma das peças teatrais mais conhecidas de Nelson Rodrigues. No teatro, já foi interpretada dezenas de vezes desde sua primeira montagem e, no fim de 2018, ganhou sua terceira adaptação para o cinema, sob a direção de Murilo Benício.

Amado ou detestado, é impossível falar de teatro brasileiro e não falar de Nelson Rodrigues. Precursor do modernismo no drama nacional, desenvolveu técnicas cênicas que influenciam montagens até os dias de hoje, como ações em diferentes linhas do tempo acontecendo no mesmo palco. Controverso, Nelson passa muito longe do que é politicamente correto. Foi assumidamente reacionário, disparou um sem número de falas machistas e apoiou o regime militar. Ao mesmo tempo, escancarou o cinismo e as hipocrisias da sociedade carioca e, sobretudo, brasileira, tocando em temas cercados de pudor e falso moralismo e sendo vaiado e aplaudido palcos afora.

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Prova disso, eis O beijo no asfalto. Depois que Arandir, um homem casado, beija um rapaz atropelado por um lotação no centro do Rio de Janeiro, o jornalista Amado Ribeiro convence o delegado Cunha, de caráter duvidoso, a forjar uma história que favoreceria ambos: um venderia mais jornais, o outro melhoraria sua reputação abalada depois da divulgação de truculência com uma mulher grávida. Daí em diante, a peça se desenrola em três atos com poucos quadros, mas atravessada por aspectos problemáticos da sociedade carioca e, sobretudo, brasileira.

Acessei o texto em três semioses diferentes: o texto dramático em si, na publicação da Editora Nova Fronteira de 2012; uma adaptação para história em quadrinhos (HQ) roteirizada por Arnaldo Branco, ilustrada por Gabriel Góes e publicada pela PocketOuro, em 2010; e o filme de 1981, dirigido por Bruno Barreto (que tá no Youtube, inclusive). Mesmo que fiéis ao texto original, as adaptações me levaram a experiências tão ou até mais fortes do que o texto original de Rodrigues. Na versão HQ, o traço do ilustrador, bem como a disposição dos quadrinhos e a escolha pelo padrão de cores preto e branco se unem ao texto ágil e entrecortado para dar uma sensação maior de que a história está correndo, tirando o fôlego. Já o filme dá mais espaço para uma apreciação mais ampla. Nele, é possível não se esquecer de que a história se passa no Rio de Janeiro da década de 1960, assim como as excelentes atuações tornam a história assustadoramente mais palpável, mais viva (pra não falar de um dos beijos mais lindos entre dois homens do cinema nacional).

Foi notícia no Uol

No nível do texto, a habilidade de Nelson Rodrigues em construir tensão com uma sintaxe que vai ficando “mais curta” ao longo da história é genial. As frases são pequenas e, quanto mais avançamos, mais entrecortadas elas ficam. Os personagens se atravessam, falam uns por cima dos outros, de modo que isso revela o frenesi da trama e o crescimento, neles, de um misto de confusão e angústia. O resultado é a cara do modernismo: a plateia pode, com incômodo, ver-se na peça. Nelson Rodrigues não usa uma lente de aumento sobre os vícios da sociedade, mas, sim, um espelho, fazendo-a se encarar e a seus preconceitos. Não há grandes frases de efeito ou reflexões explícitas. A crítica é, talvez, o elemento mais sutil.

Foi notícia no RD1

Nos dias de hoje, “O beijo no asfalto” podia ser thumbnail no Youtube, post do Instagram com o banalizado URGENTE no topo. Nos comentários, a mesma homofobia dos colegas de trabalho de Arandir, quando viram sua foto beijando o morto. Correntes de WhatsApp e threads do Twitter especulariam que Arandir e o morto eram amantes. Selminha teria de privar seus perfis e travar os comentários para não ler o deboche que escorreria da caixa de direct messages sobre seu marido e o famigerado beijo. Fake news a torto e a direito ocupariam os feeds por uma semana, até que as manchetes virassem, até que o feed rolasse, até que o algoritmo cansasse (se é que cansa). Assim como em 1961, 58 anos mais tarde, “o beijo no asfalto” continua sendo notícia e Nelson nos força à pergunta retórica: por quê?

Foi notícia no Estadão

“Ainda somos os mesmos”. Belchior e Elis poderiam ter aberto esta impressão de leitura. “E vivemos como nossos pais”. Mas abri com o trecho de uma música de Renato Enoch, justamente pelo que ela diz e como ela diz: não é justo que um beijo inicie uma guerra.

Nelson Rodrigues, ingenuidade à parte, provavelmente tenha se preocupado mais com a exposição da hipocrisia da sociedade de sua época, da podridão do sensacionalismo jornalístico e do perigo da violência policial, tudo isso amarrado por finas linhas de denúncia contra qualquer ideia de uma “família tradicional brasileira”. Qualquer que tenha sido sua motivação, contudo, não diminui a potência do retrato social que foi registrado e com o qual nos deparamos e nos reconhecemos ainda hoje.

Por isso cuidado meu bem
Há perigo na esquina

Originally published at serlinguagem.wordpress.com on March 12, 2019.

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Dawton Valentim
Dawton Valentim

Crônico por natureza. Linguista, revisor e professor. Em todo canto: @dawtonv