#SERLEITURA

O inugami de João Victor Barbosa

Dawton Valentim
Dawton Valentim
Published in
4 min readJan 25, 2019

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O deus cadela, João Victor Barbosa. Publicação independente: 2018. São Paulo. 144 p.

As coisas só existem se são pensadas. A existência de tudo que está aqui — e até a do que não está mais e a do que virá — nada tem a ver com morte ou vida, ela consiste apenas no pensamento e no seu ato conjunto. Eu só existo em mim e na memória de quem me sabe e que, por um tempo, aqui continua, mas no depois, quando o todo for absorvido pelo esquecimento, eu não existirei mais. A palavra mesmo, ela só existe porque é falada, não? O tempo também, se ele existe é porque os relógios estão nas paredes e porque se olha para eles, porque são redondas as horas e porque nelas se trabalha muito, porque as coisas se movimentam ao redor e dentro dos relógios. Quando eles caírem das paredes, nem mesmo o tempo terá sobrado. E eu fico me perguntando o que existe fora do tempo e, ainda assim, dentro da vida.

Pouco menos de um ano atrás, escrevi sobre O amor vagabundo, quarto livro de João Victor Barbosa, um jovem autor ainda independente. De lá para cá, João publicou O deus cadela.

Para ler ouvindo… The more you give / The more you have to lose.

Sendo o segundo livro que leio do autor, sinto que já posso dizer que sintetizar uma história de João Victor não é uma tarefa simples. A sinopse na Amazon, por exemplo, não faz jus à complexa tarefa que é mergulhar na história de O deus cadela, contada pelo personagem-narrador Óskar, um jovem professor de educação física que se apaixona por Simone, uma mulher tão misteriosa quanto intensa. Ambos vivem uma relação avassaladora até que ela o deixa, sem muitas explicações, fazendo-o iniciar uma busca por respostas em que se confunde cada vez mais, e nós com ele, numa incursão entre onírica e sobrenatural. Nessa busca, Óskar descobre, entre outras coisas, que Simone havia morrido muito tempo antes de se conhecerem (não é spoiler, tá na sinopse).

A incompreensão me corta, como se a nesga da praia onde eu te vi pela primeira vez se enfileirasse diante do mar numa sucessiva busca por respostas; a memória me atravessa o corpo todo; cada ínterim é uma brincadeira suja, uma ânsia por um abraço. Por que você foi embora? Se eu soubesse que aquela despedida seria a última eu teria vivido dentro dela por toda a eternidade, me recusaria a ir adiante no tempo. Para onde você foi? De quem foge? Mando mensagens no celular. Não há nenhuma resposta. Eu sigo aflito. Tento telefonar. Ninguém atende. Eu me desespero ainda mais.

O deus cadela guarda semelhanças com O amor vagabundo que revelam traços marcantes do estilo de seu autor. Aqui, persistem reflexões existencialistas, especialmente voltadas para o tempo, o sentido da existência e a constante insatisfação humana. Erotismo, misticismo e sagrado vs. profano também compõem esse emaranhado estilístico. Essencialmente hilstiano, o texto demanda certa dedicação, zomba de qualquer pessoa que o encare com o mero objetivo de “entender o que quer dizer” e alcança seus pontos altos na construção das cenas mais quentes, na relação entre o narrador e Simone (especialmente nas páginas iniciais), na maior parte dos fluxos de pensamento de Óskar, nas metáforas e, sem dúvidas, na reviravolta final. Aliás, isso sim pode ser spoiler, um fim kafkaniano!

O entusiasmo de escrever sobre O deus cadela, contudo, não diminui minha necessidade de novas (re)leituras do livro, para elaborar com mais atenção pontos em que enganchei. Se você ainda não leu o livro, o resto da experiência vai fazer pouco sentido.

Escarro e cuspo na calçada, eu sei, é terrível demais fazer esse tipo de coisa, mas eu faço.

Talvez porque o tempo que Óskar passa com Simone me pareça menor do que o tempo que ele passa na pensão, tive dificuldade para me conectar com sua obstinação, com a urgência de sua necessidade de entender o que houve com Simone e para onde ela foi e com sua estadia sem fim no quarto de cupins. Dificuldade, inclusive, que pode explicar porque simpatizei pouco com o personagem, principalmente quando ele parecia se preocupar com o que eu estava pensando sobre sua jornada (ou sobre o quanto é terrível ele escarrar e cuspir na calçada). Pouca simpatia que também dificultou a suspensão da descrença para alguns pontos, como o aprofundamento dos pensamentos de Óskar, um professor de educação física, enquanto os de Danilo, seu amigo, permanecem uniformemente superficiais ou a rápida promoção de Lineu de velho chato a terapeuta voluntário.

Fato inconteste é que O deus cadela representa a consolidação de um estilo de escrita para João Victor Barbosa, apresentando, ainda que não seja meu preferido, um domínio narrativo mais maduro e uma consciência autoral mais apurada. O texto nos convence de que ele sabe o que quer escrever, que ele nos desafia a compreender o que está ali ou a propor uma interpretação. Se há coragem para se escreverem histórias caleidoscópicas como as que o jovem autor faz, em tempos de fórmulas fáceis (e eficientes) para best-sellers, que haja coragem também para que nossas listas “TBR” deem chance a tais histórias. Valorizemos a literatura independente.

Parto para a próxima leitura acenando com um “até mais” para O deus cadela, atento ao que mais poderá vir de João. E a quem não entendeu o título do post, conversamos depois da leitura do livro. 🙂

P.S.: Oskanael seria fan service, mas eu queria, haha.
P.P.S: se João Victor, um dia, publicar um livro “tudo o que eu quis dizer com os livros que escrevi”, registre-se que foi sugestão minha. =P

Originally published at http://serlinguagem.wordpress.com on January 25, 2019.

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Dawton Valentim
Dawton Valentim

Crônico por natureza. Linguista, revisor e professor. Em todo canto: @dawtonv