O polêmico amor de Cristóbal

Dawton Valentim
Dawton Valentim
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5 min readMar 23, 2018

“O amor vagabundo”, João Victor Barbosa. Publicação independente: 2016. São Paulo. 125 p. Não recomendado a pessoas pudicas.

❝Cristóbal gostava da beleza puramente ordinária, aquela que não ofuscava nada ao redor. Ele gostava do simples, do que não era raro, daquilo que podia não significar muito❞ (p. 23).

Sim, li pelo celular por motivos de “ainda não tenho e-reader”, haha.

Algumas pessoas que leram O amor vagabundo disseram que foi uma leitura rápida, “de uma só tacada” (li esse comentário na Amazon). O quanto da história elas perderam? O livro do autor independente João Victor Barbosa é uma verdadeira Torre de Babel de interpretações, reconhecimentos e desconhecimentos, característica que a obra guarda com quem a inspirou, a escritora Hilda Hilst. A inspiração foi confessada em trocas de e-mails que mantivemos nas últimas semanas, mas talvez nem precisasse: o texto, sem deixar de lado a originalidade, fala por si.

Encontrei João e seu amor vagabundo enquanto fazia pesquisas sobre Hilst para a série #ACaminhoDaFlip. Em seu blog, tive a chance de fazer o download da versão digital e ilustrada do romance (que se junta a outros três dele). Desde então, venho processando a linguagem precisamente densa que o rapaz de (quase) 24 anos e formado em Letras desenvolve num texto sem capítulos e atravessado por desenhos autorais que acompanham a lascívia da leitura. Aliás, aqui estão dois pontos de descrição do autor que, no contexto da obra, fazem certo sentido. Apesar de eu não ser adepto de associações diretas entre talento e formação, é quase inevitável pensar que ser formado em Letras e ser de 93 dá a João um domínio semântico e uma vontade pela experimentação textual que ou enlaçam quem se dispõe a seguir até o fim da leitura ou dizem desde a primeira página que “esse romance pode não ser pra você”.

Pornográfico, gay e com alguns quês surrealistas, O amor vagabundo não é um romance para estômagos fracos. Assumidamente despudorado, o texto não poupa vocabulário nem se preocupa, pelo menos até as páginas finais, em conduzir o leitor para um direcionamento específico. É verborragia que oscila entre páginas que precisam de horas para serem digeridas e outras que nos deixam a pergunta do que querem de fato dizer.

“Eu disse que não queria sofrer com tua morte, que não sei se teria capacidade para enfrentar essa espécie de solidão, essa que vem depois da perda, porque aquela que existe desde o nosso início vem de dentro, o que me parece ser mais fácil de aceitar. Então você pegou um livro e me leu aquilo, Ya’aburnee, uma palavra árabe que significa o desejo intenso de querer morrer antes da pessoa que se ama para não sofrer com a perda dela. Prefere morrer para deixar de sofrer por mim enquanto eu aqui continuo sem você ou viver sofrendo no meu lugar para que eu não tenha que carregar esse pesadelo que seria a vida sem você? Foi o que você me disse em seguida.” (p. 56).

Intenso, corpóreo e com muitos quês românticos, O amor vagabundo também não é um romance para corações despreparados. Chegando até mim tão perto de quando assisti ao premiado Me chame pelo seu nome, a história de amor que se conta aqui, assim como a da que se conta na Itália, é perpassada por metáforas e não ditos que podem passar despercebidos em meio às incontáveis explicitações.

Conversam com o leitor, alternadamente, Cristóbal e uma entidade que se confunde com um alter ego ou um Outro lacaniano a quem Cris procura evitar ouvir, por meio de remédios. Ambos nos contam a trajetória de Cristóbal por caminhos, corpos e desarranjos sexuais permeados por situações românticas, eróticas e escatológicas, numa ode profunda ao amor que o jovem protagonista tem por Inaniel, seu namorado. Ambos também compartilham angústias particulares: Cristóbal está preso ao lugar onde mora e a uma porca falante com quem vive e que o submete (ou é submetida?) a desgastantes explorações sexuais; a entidade, que me acostumei a reconhecer como segunda consciência, não sabe o que é nem se existe apenas enquanto Cristóbal existe.

No contexto em que aparece, essa é uma das ilustrações mais significativas do livro.

Aliás, por vezes, senti que essa voz / segunda consciência / entidade traduzia dentro da narrativa minhas próprias angústias, meus próprios questionamentos. Quando tive vontade de analisar a mente de Cristóbal e entender os episódios de sua infância / adolescência que desencadearam certos quadros psicológicos, lá estava a entidade se propondo a fazer exatamente isso, com o cuidado de não ser notada por Cristóbal. Portas entreabertas ou trancadas, choros no quarto ao lado, brigas virulentas, toques inapropriados vão se juntando como peças de um quebra-cabeça que, preciso prevenir, não se completa.

Juntam-se ao círculo principal Inaniel e a porca. Com o primeiro, é construída uma relação incomum para Cristóbal, sem tanta pressa e com o zelo de preservar cada momento; aqui, Cristóbal acredita ter encontrado sentido no sexo e, sobretudo, na companhia de alguém com nome, que não o usa nem é usado. Com a porca, a relação é de abuso, prisão, raiva, culpa; nesta parte da trama, a entidade volta a me representar: por que Cristóbal permite que ela faça o que faz? Lacan explicaria. Para ambos os espaços, acredito que cabe uma ressalva justa: o livro inteiro é para ser lido de mente aberta, o que pode significar abrir mão de problematizações atuais, algo de que tentei me lembrar sempre que pensava nas personagens femininas, por exemplo.

Apesar de não ser necessariamente surpreendente, especialmente considerando pequenas pistas que o texto vai deixando, o fim o livro, ainda bem, não nos deixa num lugar aflito, em que saímos com a angústia de não termos entendido absolutamente nada. Ao contrário, o fim esclarece, sem necessariamente subestimar o leitor. Finda a leitura, pensei em escrever novamente ao João, assim como fiz certa manhã, ainda impactado pela palavra ya’aburnee, para lhe fazer perguntas cujas respostas poderiam dar alguma chance a esse texto de não ser tão turvo como é. Desisti, no entanto. As perguntas que saíram comigo de dentro d’O amor vagabundo fazem parte da experiência, assim como as teorias.

Quem era a porca? O que ela representava? O que foi real de tudo aquilo? Inaniel foi real? Quem tirou Cristóbal de debaixo da cama? O que era a entidade? Quanto de proximidade entre o protagonista e o escritor revelam o interior de São Paulo e a idade de Cristóbal? Fugir de quê?

João Victor Barbosa também escreveu O bolor dos dias, A hora da alva e Sangue de elefante. A versão ilustrada de O amor vagabundo, outras ilustrações e poemas do jovem podem ser acessadas em antropofagiablog.wordpress.com. Já estou à espera das reedições.

P.S.: João é um autor independente, assim como muita gente que pode estar aí, perto de você. Valorizemos quem não está no mainstream. Se puder, compre; se não puder, compartilhe; se gostar, incentive. João, o livro é foda! ❤

Originally published at serlinguagem.wordpress.com on March 23, 2018.

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Dawton Valentim
Dawton Valentim

Crônico por natureza. Linguista, revisor e professor. Em todo canto: @dawtonv