#LINGUÍSTICA
Por que popularizar a Linguística?
Você já notou que há elementos de nossa existência sobre os quais pensamos pouco ou nem sempre lembramos que existem? Respirar, por exemplo. Nosso corpo, salvo exceções, respira mesmo quando estamos dormindo, distraídos, não concentrados na importância que existe em inspirar e expirar. Daí, por exemplo, um dos encantos dos exercícios de respiração ou de alongamento que nos propõem o controle consciente desse movimento. A língua, sem ser a da boca, essa coisa aparentemente simples que permite que você entenda o que eu estou querendo dizer a partir desse monte de desenhos cujos significados compartilhamos e que chamamos de letras, é outro desses elementos. A língua, assim como a respiração, faz parte de nós de maneira tão natural que nem todos paramos para admirar suas complexidades ou para perceber a importância desse parar para estudá-la.
Essa relação tão próxima entre as pessoas e o objeto de estudo da Linguística (e da Linguística Aplicada), a(s) ciência(s) da linguagem humana, ironicamente, é um dos motivos que explica tantas confusões quanto ao papel do linguista na sociedade. É aquele que fala várias línguas? É aquele que dá aulas de português? É aquele que faz correção gramatical? É como se não fosse possível visualizar a necessidade de haver um cientista que se preocupe em investigar um fenômeno tão natural e aparentemente simples como a língua. Esse, aliás, parece ser o desafio da maior parte das ciências humanas, aquelas que lidam com objetos que estão, como “humanas” denuncia, próximos das pessoas, como o pensamento e a existência, os fatos históricos ou a própria educação. Quantas vezes um médico ouve de um paciente que sua prescrição está equivocada em comparação ao número de vezes que um professor ouve que não deve lecionar isso ou aquilo?
Mas não é só a proximidade com a língua que favorece a distância com o linguista. A visão ainda muito cartesiana que conduz o ensino de ciência na escola como sendo feita somente em tubos de ensaio e com jalecos brancos ou a redução do ensino de “linguagens, códigos e suas tecnologias” a gramática de normas limpas e secas e literatura “porque ler é bonito” também dificulta o contato entre o imaginário coletivo e o cientista da linguagem. Basta observar a quantidade de estudantes que ainda adentram os cursos de graduação em Letras convencidos de que estudarão tão somente a gramática normativa e lerão tudo o de mais belo da literatura clássica.
Se não estamos tão bem representados na escola, talvez eu nem precise problematizar a representatividade do linguista e de outros pesquisadores “de humanas” na grande mídia. Tão misterioso como a clássica dúvida sobre quem veio primeiro, se o ovo ou a galinha, é saber se a escola reflete a imagem de cientista dos meios de comunicação de massa ou se é a mídia de massa que reflete a imagem de cientista da escola. E não escapa de “mídia de massa” o entretenimento. A primeira e única vez em que vi um linguista aplicado aparecer numa novela foi em “O outro lado do paraíso” (2017), numa rápida participação. O personagem era um hipersexualizado entregador de pizzas, estava se planejando para iniciar o mestrado e ouviu um “que intelectual!” depois de dizer que estudaria Linguística Aplicada.
A inclusão desse personagem na novela de 2017 talvez se deva a uma representação bem mais feliz de um cientista da linguagem, na figura da personagem Louise Banks, do filme “A chegada” (Arrival), lançado em 2016 e inspirado no conto História de sua vida (Ted Chiang). No filme, Louise é uma renomada linguista que é convocada para decifrar a linguagem de seres extraterrestres que chegam à Terra. Como acontece com produtos culturais de grande porte, a narrativa contribuiu muito para que o estudo da linguagem se tornasse tema de vídeos, resenhas, podcasts e teorias sobre o fim do filme e sobre o “alfabeto” dos ETs (fenômeno semelhante ao que aconteceu com “Avatar” e a língua na’vi, por exemplo). Foi a brecha que tivemos, enquanto pesquisadores da linguagem humana, para socializarmos com quem não está na esfera acadêmica nossos temas de pesquisa e pontos de formação.
Aproveitar ou não essa brecha, inclusive, me remete a um quarto motivo de apagamento ou desconhecimento das ciências humanas e sociais pela população em geral: nós mesmos, ou, para não ser tão severo, a própria tradição acadêmica dessas ciências. O tripé “ensino, pesquisa e extensão”, que é fundamental para que uma instituição seja considerada universidade, é bem mais cansativo do que parece. Nos desdobramentos desses “três pés”, está uma rotina pesada de planejamento e realização de aulas, avaliações, trabalhos acadêmicos e devolutivas; elaboração, orientação, revisão, tramitação e avaliação de projetos de pesquisa, artigos acadêmicos e capítulos de livros ou livros inteiros; editoração de periódicos acadêmicos, anais de eventos e materiais didáticos; proposição, coordenação, prestação de contas e manutenção de projetos de extensão universitária; gerenciamento de bolsas de monitoria, iniciação científica, iniciação à docência, permanência universitária e de pós-graduação; desenvolvimento de funções administrativas em cargos de coordenação, diretoria, pró-reitoria, reitoria e representação… Deu pra entender, né?!
No fim da semana, sobram poucas forças ou força nenhuma para iniciativas de divulgação científica. Especialmente considerando que quase todas as iniciativas desse tipo precisam partir, no mínimo, da “desnaturalização” de uma linguagem técnica que vai se entranhando em nosso discurso a cada nova tarefa da rotina acadêmica, mas que não é acessível para quem está fora da academia científica, o que não é necessariamente simples. É como quando alguém pergunta o significado de uma palavra que você usa há tanto tempo que nem consegue mais explicar o que ela quer dizer (“O que é alguma coisa ‘paia’? É… Como vou explicar?! É… É tipo quando alguma coisa não é ‘massa’…”).
Mas o título é “Por que popularizar a Linguística?” e não “Desafios para a popularização da Linguística”. A questão é que os dois pontos estão diretamente associados. Ora, o fato de haver proximidade das pessoas com o objeto de estudo da ciência da linguagem humana não só é um desafio, como vimos, mas também a evidência da importância de levar a esse público pesquisas, descobertas e interesses da Linguística, de maneira acessível e não simplista, de modo a fazê-lo participar de e compartilhar um olhar mais crítico e mais consciente sobre fenômenos da linguagem. Além disso, no atual cenário de cortes de bolsas de pesquisa e de sucateamento da ciência brasileira como política de governo, uma divulgação científica que alcance pessoas cada vez mais distantes do âmbito universitário é, sobretudo, um ato político de resistência.
Digo isto desde minha participação no movimento estudantil, na graduação: você já reparou na diferença de tempo de duração entre uma greve de professores universitários (ou mesmo da educação básica) e uma greve de quase qualquer outro setor da sociedade? Quando a universidade cruza os braços ou os põe em riste contra o sucateamento e o sufocamento financeiro, a população não tende a se engajar, principalmente por não saber o que se passa “lá dentro”. E é justamente (mas não somente) a divulgação científica que ajuda a construir essa ponte entre o “cá fora” e o “lá dentro” ou, mais utopicamente, que ajuda a entender que “cá” e “lá” são um lado só. Isso para não entrarmos na questão das políticas linguísticas, que daria ainda mais pano pra manga.
Promover alternativas à imagem estanque de cientista limitada à representação da ciência enquanto espaço absolutamente estéril, descontaminado, branco e milimetricamente calculado também é reforçar o valor social da Linguística e das ciências humanas. Na escola, significa dar visibilidade a aptidões e inteligências nem sempre valorizadas ou redirecionadas a profissões e campos de atuação sócio-historicamente privilegiados (como quando dizem “você escreve bem, devia fazer Direito”) e a variados métodos científicos para além do quantitativo (como estudo qualitativo, estudo de caso, etnografia, netnografia, pesquisa exploratório-descritiva..). Na mídia, significa fortalecer a representação da ciência tão multifacetada como ela de fato é, contribuindo com a popularização do método e do raciocínio científicos por meio da audiência massificada.
E, chegando ao quarto desafio que apontei, incluir a divulgação científica na rotina acadêmica pode ser mais orgânico do que parece. Incumbir bolsistas de iniciação científica — que, por natureza, devem ter acesso a textos introdutórios — da elaboração de estratégias e textos de divulgação de investigações publicadas pelo grupo de pesquisa de que fazem parte ou pelo professor-orientador que os coordena é uma maneira natural e produtiva de espalhar a palavra da ciência. O mesmo pode ser feito com alunos de graduação, como trabalho final de disciplinas, ou até mesmo com orientandos de pós-graduação, uma vez que já há revistas acadêmicas especializadas em textos de divulgação, como a Roseta, da Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN).
Nesse caminho de popularização da Linguística, surgem novos projetos a todo instante, nos mais variados formatos: canal no Youtube, perfil no Instagram, blog, podcast etc. Mas agora é com você. Se você fosse explicar sua dissertação de mestrado para alguém que está no ensino médio, como você faria? E para alguém que teve de sair da escola ainda no ensino fundamental? E para alguém que é formado numa área diametralmente oposta a sua? Como você explicaria sua tese de doutorado para uma criança de 11 anos?
Câmbio, desligo.
Leituras sugeridas sobre esse tema:
- A importância da divulgação científica da Linguística;
- Onde estão os linguistas na divulgação científica brasileira?;
- Da necessidade premente de se cometer uma política de divulgação científica qualificada dos trabalhos linguísticos;
- A divulgação científica no Brasil, o lugar da Linguística — e meu lugar nisso tudo;
- Comunicação científica e divulgação científica: aproximações e rupturas;
- Entrevistas: Olimpíada e divulgação da Linguística.
Originally published at http://serlinguagem.wordpress.com on September 16, 2019.