Traiu ou não traiu Bentinho?

A Capitu de Adísia Sá responde

Dawton Valentim
Dawton Valentim
4 min readJan 23, 2018

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Capitu Conta Capitu, Adísia Sá. Fortaleza: Multigraf Editora, 1992. 104 p.

Dedico este trabalho a todas as mulheres estigmatizadas como mercenárias, traidoras, prostitutas, adúlteras — silenciadas nas suas razões (p. 13).

Uma raridade dessa, bicho. ❤

Não é raro que a Literatura se perpetue em nossa memória mais pelas perguntas que suscita do que pelas respostas que parece dar. Em certa medida, isso reflete diretamente a diversidade de visões e de leituras de que somos capazes. Ler, afinal, é bem mais do que aumentar um ponto, pois consiste no preenchimento ou no prolongamento de sentidos, na assimilação do que observa-se ao que se vive. A Literatura brinca com as brechas de nossa falta (feliz) de unanimidade.

Nessa linha de raciocínio, afunilando para a Literatura Brasileira, é possível dizer que o questionamento “Capitu traiu ou não traiu Bentinho?’ é um dos mais célebres. Mote de pesquisas de mestrado e de crônicas de jornal, a trama machadiana encontra, em cada geração, novos motivos para continuar pertinente. Quando publicado, por exemplo, Dom Casmurro (o livro) encontrou uma sociedade brasileira em franco processo de urbanização e de letramento e, consequentemente, muito mais patriarcalista do que hoje.

Numa época em que ainda era estranho que mulheres pudessem ler (“poder” aqui muito mais no sentido de “ter permissão” do que de “ser capaz”), o espaço para a dúvida era pequeno: a traição de Capitu era não só evidente como também condenável. É a partir da segunda metade do século XX, com o advento dos movimentos feministas, que novas questões surgiram. Quem conta a história de Capitu? Do que é capaz de inventar uma mente contaminada pela possessividade, como a de Bentinho? E se tiver havido traição, estaria Capitu errada, diante do casamento em que se metera?

Em 1992, em mais um pico dessa mesma discussão, Adísia Sá lança “Capitu Conta Capitu”, como uma resposta da escritora. Ou melhor, como uma resposta de Capitolina. “Mãe” do Jornalismo cearense, Adísia saltou das crônicas de jornal para, segundo a própria jornalista, dar voz à Capitu numa discussão em que só se contava com a versão de um homem. É importante não deixar de observar a personalidade de Adísia para comentar seu livro. Primeira mulher a assumir a função de ombudsman na imprensa nordestina e uma das fundadoras do primeiro curso de jornalismo do Ceará, Sá já assumiu posicionamentos controversos, mas (quase) sempre condizentes com seu gênio forte e com a figura da mulher que chegou primeiro onde mulheres não chegavam (ou chegavam pouco).

A partir daqui, preciso dizer que tanto o texto de Adísia quanto o meu só “terão graça” se você tiver lido Dom Casmurro (vou até deixar esse link aqui pro caso de você querer baixar).

Ver a adaptação que a Rede Globo fez do romance também vale MUITO a pena. É uma das melhores adaptações nacionais que já vi.

“Capitu Conta Capitu” foi prefaciado por Linhares Filho, Moreira Campos e Rachel de Queiroz e é um “diário” escrito por Capitolina ao longo de praticamente toda sua vida. Para emendar sua narrativa à de Machado de Assis, Adísia abre o livro com um primeiro capítulo que nos mostra uma carta de Bento Santiago enviada a Sancha, pouco tempo depois do fim do que é contado em Dom Casmurro. Na carta, Bento explica que o diário fora encontrado entre os pertences de Capitu com a indicação de que deveria ser enviado a Sancha, sua amiga de infância.

A partir daí, nos tornamos confidentes de Capitolina, tendo acesso aos pensamentos e às inquietações da personagem machadiana, o que, por si só, já é instigante. Aqui, é possível notar a preocupação quase jornalística que Adísia teve em ser fiel aos fatos da narrativa de Machado. Seu texto está longe de ser uma mera adaptação de Dom Casmurro: seu texto é o lado B. No entanto, mesmo não sendo uma mera adaptação, não posso deixar de reafirmar que o texto, sem o acesso prévio ao original, não tem sentidos completamente próprios.

A Capitu “adisiana” é extremamente erótica, afastando de si o Romantismo com que Bentinho a conta (apesar de Dom Casmurro ser realista) e assumindo um protagonismo comprometido com a liberdade sexual da mulher e com uma forte e bem-vinda crítica à figura obcecada do homem (no sentido genérico e no sentido narrativo). Ao responder à famosa pergunta da traição, esta Capitu reflete a própria Adísia, retirando da mulher quaisquer traços de vilania ou de condescendência. Vilania vista no próprio Dom Casmurro e condescendência presente em “Capitu, Memória Póstumas”, de Domício Proença, e adaptado a seguir:

Esse vídeo, salvo engano, só pode ser visto pelo computador (e é lindo).

A chance de ler um clássico tão marcante pelas perguntas que suscita contado e “aumentado” pelo olhar de uma mulher supera eventuais desconfortos da narrativa, como a emenda frágil com que Adísia junta seu livro ao do Bruxo do Cosme Velho. A leitura flui com facilidade e os elementos são bem contextualizados, como o erotismo de Capitu, já mencionado. Não é exatamente a interpretação de Dom Casmurro que guardo comigo, mas acredito que é justamente isso que fez Capitu Conta Capitu ainda mais envolvente: ele não concordou comigo, ele me desafiou.

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Dawton Valentim
Dawton Valentim

Crônico por natureza. Linguista, revisor e professor. Em todo canto: @dawtonv