Sobre amar mulheres

Tarcila Ferreira
De cara para o sol
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3 min readJul 25, 2018

…sobre amar-se

Arte de Paula Nicho Cumes (Guatemala)

Não sei ao certo quando voltei a me ouvir. Mas o fato é que voltei. E desde então, passo a ouvir a voz que sempre me acompanhou, a minha própria voz (a de dentro). A partir daí tenho sido levada a lugares que nunca pude imaginar. De certo que devo desculpas a mim mesma, ou às que me habitam; por muitos momentos eu tapei os ouvidos diante dessa auto-voz e talvez tenha me perdido no caminho.

Mas houve um dia em que finalmente concretizei um desejo que quase deixei morrer. Era um sábado, dia 28. Era outono, mas não lembro muito bem se chovia ou não. Depois de ansiosa espera, fui parar em uma enorme sala com chão de madeira, primeiro ou segundo andar de uma construção no centro de Salvador.

Um lugar totalmente desconhecido para mim. Lá, havia centenas de mulheres, total ou parcialmente desconhecidas para mim. Logo eu, que fui sem nenhuma expectativa, mas guiada pelo coração. Senti o peito ferver de ansiedade, enquanto aos poucos eu me dava conta do ambiente e observava cada uma delas, cada sorriso, cada gesto, cada sinal de liberdade e de amor. Comecei a me sentir em casa, mesmo estando fora dela.

Para quem se importa com essa informação, eu estava na primeira aula de uma (não uma qualquer) oficina de introdução ao Maracatu. Em um dado momento, antes da palestra que estava para começar, cantarolei mentalmente uma música, especificamente um trecho que dizia assim:

Eu quero a chave do portão
Pra destrancar meu jardim
Meu galhinho de alecrim […]

De uma hora pra outra, uma moça que sentava na minha frente começou a cantarolar esta mesma música, na parte do refrão. Eu pensei comigo “estou louca? essa moça tem bola de cristal?” Não, eu só poderia estar mesmo louca.

A partir daí foi como se essa música invadisse o local feito uma onda e contagiasse o ambiente, se espalhando pelas mulheres da sala e transformando-se num coro lindo. Entre pandeiro, palmas e risos; entre o meu espanto e euforia contidos, eu estava em casa!

Depois dali eu não tive dúvidas de onde queria estar. Todos os sábados seguintes eu tinha um compromisso comigo que eu não queria adiar e nem parar. Um compromisso muito maior do que aprender a tocar, mas que também passava de forma potente por este fato.

Cada vez mais, me sentia em casa entre aquelas centenas de mulheres batuqueiras, mulheres empreendedoras, mulheres irmãs. Ali, fui construindo novos aprendizados, reconstruindo afetos, me reconstruindo. Passei a enxergar outros momentos importantes da minha vida, onde as mulheres foram fios condutores em meus trajetos, e agradeci. No fim das contas, toda aquela multidão parecia um grande clã de bruxas, seja convocadas pelo vento ou pelas águas, que se sintonizavam e interligavam-se, cada uma no seu espaço e no seu tempo.

Percebendo aquela soma de forças (práticas e extrafísicas), enxerguei a minha própria e a importância do amor entre mulheres e para mulheres. Ali, e a partir dali, eu começava a reencontrar uma parte dessa mulher que há em mim.

Por: Tarcila Ferreira |Foto: pintura de Paula Nicho Cumes (Guatemala)

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Tarcila Ferreira
De cara para o sol

Comunicadora (Jornalista) | Canceriana, poeta (talvez), caminhante e mística