Literatura apocalíptica
Uma resposta aos anseios de uma época de mortes e perseguições
A partir da reforma de Neemias e Esdras ocorre em Israel uma mudança radical que levará ao surgimento daquilo que se convencionou chamar judaísmo. A sociedade será organizada ao redor de dois pontos de referência, a Lei e o Templo: a Lei, expressão da vontade de Deus; o Templo, símbolo da unidade do povo. A maior preocupação para um israelita piedoso, tal como será mais tarde para o movimento farisaico, dirá respeito propriamente à observância da lei, ao culto e à separação daquilo que é profano, em primeiro lugar, do contato com os outros povos. As práticas distintivas do sábado e da circuncisão serão acentuadas de modo particular. A perda da liberdade política certamente contribuiu para o acirramento destas posturas separatistas.¹
A partir do século IV a.C. começa a se desenvolver, no judaísmo, uma linha de pensamento que, posteriormente, seria chamada pelos pensadores modernos de “apocalíptica”. Como todo rótulo dado a uma categoria de corrente de pensamento, ele é limitado diante da complexidade de tal linha de pensamento. Este movimento se difere do que se conhecia até então, o profetismo. Enquanto os profetas denunciam a infidelidade do povo no tempo presente, enquanto apontam para a intervenção divina como resposta para o futuro. Na apocalíptica o tempo presente é mau, perverso e corrompido, por isso Deus fará desaparecer o mundo, criando algo totalmente novo e instaurando seu reino. A semente deste pensamento está no profetismo e seu conceito sobre O Dia do Senhor. Vejam como o profeta Joel narra este dia:
¹Toquem a trombeta em Sião!
Soem o alarme em meu santo monte!
Que todos tremam de medo,
pois está chegando o dia do Senhor.
²É um dia de escuridão e trevas,
um dia de densas nuvens e sombras profundas.
Como o amanhecer se estende pelos montes,
assim surge um grande e poderoso exército.
Nunca se viu algo parecido,
e nunca mais se verá.
Soma-se a este conceito do Dia do Senhor um grande texto que marcará a história do judaísmo daquele período, mesmo que não faça parte da Bíblia: o Livro de Henoc. Um livro composto ao longo de três a quatro séculos e que influenciará diretamente o pensamento judaico. Nos trechos mais antigos do livro, o tema central gira em torno da origem do mal como sendo consequência do pecado dos anjos e não dos homens. A salvação da humanidade não está, portanto, no cumprimento da Lei, nem do culto centrado no Templo de Jerusalém, mas virá da intervenção divina que destruirá o mal no julgamento final das almas. Se lermos o Eclesiastes e o Eclesiástico encontraremos refutações a este pensamento, provavelmente como reações a estes ensinos do Livro de Henoc.
Dentre os livros que seguirão o caminho do Livro de Henoc estão A ascensão de Moisés, Henoc eslavo, Apocalipse de Sofonias, Apocalipse siríaco de Baruc, O quarto livro de Esdras, Apocalipse grego de Baruc, estes textos não foram incluídos nos cânones hebraico e cristão. Temos na Bíblia Hebraica o livro de Daniel e na Bíblia Cristã o Apocalipse, ambos inseridos neste gênero muito mais pelo estilo de escrita que por seu conteúdo. Estes textos citados possuem características marcantes: são pseudepígrafos (quando a autoria é atribuída a um autor que não o escreveu) ou revelações advindas do mundo celeste a personagens ilustres como Henoc, Baruc, Moisés; o amplo uso de linguagem alegórica (quando se procura explicar através de fábulas ou metáforas) e uma forte marca escatológica (a respeito do fim dos tempos) e todos eles são destinados a um grupo de eleitos aos quais é dado o dom de interpretar e decifrar o mistério ali escrito.
Conclusão
Surgida no século IV a.C., é no século II a.C. que a apocalíptica vai ganhar força, principalmente após a perseguição de Antíoco IV. Vindos de sucessivos episódios de guerras, exílio e dominações, a literatura apocalíptica surge como uma resposta ao um cenário de desolação. Uma intervenção divina e espetacular, como narradas nas literaturas apocalípticas, trazem certo conforto e esperança, e uma boa dose de pessimismo, a quem é oprimido. Um bom exercício é comparar como os livros dos Macabeus retratam que a salvação vem de Deus através de uma intervenção heroica do povo fiel de Israel por meio das armas e o livro de Daniel mostra que o povo espera a intervenção final de Deus, que não tardará. Um bom exemplo de como a literatura apocalíptica lia o mesmo período que a literatura macabeia. Ao lado desta esperança de redenção total surge o pensamento no judaísmo que culminará na teologia da ressurreição dos mortos, da imortalidade da alma e, em muitos casos, na vinda do Messias, referenciado em Daniel como “Filho do Homem”.
A apocalíptica não é um movimento que visa alienar os seres humanos, desconectando-os da realidade ou assumindo uma postura de isenção ante os fatos históricos. Sobre isso Luca Mazzinghi é bem claro:
A espera pelo Reino de Deus constituiu-se como uma importante motivação para o cristianismo, uma tensão ativa em direção ao futuro que caracterizou grande parte da história do Ocidente¹.
¹MAZZINGHI, Luca. História de Israel: das origens ao período romano. Editora Vozes. Petrópolis, RJ. 2017
O presente texto foi escrito para a aula da Academia Bíblica da Igreja Presbiteriana Independente de Tucuruvi, São Paulo, SP, escrito em 12 de maio de 2021
Índice das aulas
O índice é atualizado no artigo da primeira lição.