​O judaísmo helênico

Giovanni Alecrim
De casa em casa
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4 min readApr 10, 2021

Onde estava a imensa massa dos judeus

Foto atual de Alexandria, Egito

Flávio Josefo cita com orgulho o geógrafo e historiador grego Estrabão (63 a.C.-19 d.C.) que teria dito a respeito dos judeus: Não é fácil encontrar um só lugar no mundo que não hospede esta gente e no qual (esta) não tenha manifestado a sua autoridade¹

Na aula “Refugiados e remanescentes” falamos sobre eles, a abundância de judeus que, fugindo da invasão assíria e babilônica no século VIII e VI a.C., se espalharam pelas terras ao redor. Agora, sete a cinco séculos depois, seus descendentes estão imersos nas culturas locais e compõem uma imensa massa de judeus, o Israel de Javé fora da terra prometida. Esta imensa massa, na época do Novo Testamento, era maior que toda a população hebreia residente na Palestina. O que não é muito diferente de hoje. No tempo de Otaviano Augusto, o primeiro imperador de Roma, se registra cerca de quatro trilhões e meio de judeus nas fronteiras do Império, cerca de 7% da população. Considerando apenas os judeus do Império, já é possível afirmar que estes estavam em contato direto com a cultura helênica, assimilada e adaptada pelos romanos.

O contato hebreu com a cultura helênica produziu, como todo choque de cultura, sabores e dissabores. Se por um lado pudemos acompanhar os conflitos desencadeados no período dos Macabeus, por outro, os hebreus da diáspora eram mais abertos ao mundo grego. Habitavam cidades gregas como cidadãos plenos, falando grego, assimilando os costumes e conservando a própria fé e tradições. Não à-toa há uma quantidade de nomes gregos entre os discípulos de Jesus: Pedro, Lucas, Marcos, João, sendo alguns deles forma grega do nome em hebraico. Outro exemplo é como Lucas, em Atos dos apóstolos, transforma Saulo em Paulo, para um melhor entendimento do mundo de então.

Não apenas nos registros, mas também na religiosidade é sentida a influência do helenismo. O judaísmo da diáspora é menos afeito aos aspectos cultuais e mais próximo das questões éticas. Templo, sacerdócio, culto, práticas rituais têm sua importância, mas não são centrais nos debates, ainda mais se comparados às questões morais, que onde o judaísmo se propõe mais ético diante do helenismo e outras religiões pagãs. É no judaísmo da diáspora, em Alexandria do Egito, que a interpretação alegórica das prescrições cultuais e rituais é desenvolvida, um método que terá enorme influência na maneira como os autores do Novo Testamento interpretariam o Antigo Testamento ante a pessoa de Cristo.

Merece destaque, neste período, a forma como a fé judaica procurava se mostrar superior à filosofia grega. Fílon de Alexandria, filósofo judeu-helênico que tentou uma interpretação do Antigo Testamento à luz das categorias elaboradas pela filosofia grega e da alegoria, chega a propor que alguns dos filósofos gregos foram discípulos de Moisés. Nesta mesma linha surgem obras que colocam o mundo judaico e grego em contato, como a Carta de Aristeia e o Quarto Livro dos Macabeus, escritos apologéticos que procuram mostrar ao mundo helênico a superioridade moral e filosófica dos hebreus.

O historiador judeu Eupólemo — considerado por alguns o personagem que Judas Macabeu enviou a Roma (cf. 1Mc 8,17) — parece ter escrito em língua grega uma história dos judeus na qual sustentava que os fenícios e os gregos teriam aprendido a escritura de Moisés.¹

Mas, afinal, teriam os judeus conseguido alguma influência sobre o mundo helênico? O que se tem de registro são os pagãos solicitando ingresso no judaísmo. Embora não circuncidados, observavam os preceitos fundamentais da Lei e participavam ativamente da vida da sinagoga. Temos um exemplo na figura de Cornélio, centurião romano citado em Atos 10.

Conclusão

Toda essa presença e influência judaica tinha seu preço. Por se proclamarem superiores ética, moral e religiosamente, possuírem uma lei rigorosa e estranha aos olhos dos pagãos, era natural que causasse espanto e hostilidade, com traços de antissemitismo. O Livro da Sabedoria, do cânon católico romano, confirma um cenário bastante peculiar presente em Alexandria do Egito. Sendo os judeus cerca de 40.000 cidadãos, quase um quinto da população da cidade, lutavam por direitos plenos civis. Sob o Império Romano, os judeus gozavam de certa autonomia, principalmente no campo religioso, mas isto não impediu perseguições como a de Calígula (37–41 d.C.). Por outro lado, o Imperador Claudio, em edito para a cidade de Alexandria do Egito em 41 d.C. “exorta a não colocar em suspeição o direito dos hebreus à sua liberdade religiosa e à manutenção de seus costumes e convida à ‘compreensão e amizade recíprocas’”¹. No entanto, o mesmo Cláudio, em 49 d.C., após uma rebelião contra os judeus, os expulsa de Roma. Todo este panorama, ora favorável, ora de perseguição, não impediram o desenvolvimento da literatura judaica da diáspora. É o assunto do nosso próximo encontro.

¹MAZZINGHI, Luca. História de Israel: das origens ao período romano. Editora Vozes. Petrópolis, RJ. 2017

O presente texto foi escrito para a aula da Academia Bíblica da Igreja Presbiteriana Independente de Tucuruvi, São Paulo, SP, escrito em 10 de abril de 2021

Índice das aulas

O índice é atualizado no artigo da primeira lição.

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Giovanni Alecrim
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