Sara nossa alma, Senhor

Giovanni Alecrim
De casa em casa
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6 min readJul 19, 2020

Ezequias ora a favor do povo

¹⁷Visto que muitas pessoas não haviam se purificado, os levitas tiveram de abater para elas o cordeiro pascal, a fim de consagrá-las ao Senhor. ¹⁸A maioria dos que vieram de Efraim, Manassés, Issacar e Zebulom não havia se purificado. Mas o rei Ezequias orou por eles e foi permitido que comessem a refeição pascal, embora isso fosse contrário aos requisitos da lei. Pois Ezequias orou: “Que o Senhor , que é bondoso, perdoe ¹⁹aqueles que resolveram buscar o Senhor, o Deus de seus antepassados, mesmo que não estejam devidamente purificados conforme os padrões do santuário”. ²⁰E o Senhor ouviu a oração de Ezequias e perdoou o povo. 2 Crônicas 30.17–20

Em 722 a.C. o Reino do Norte termina. Israel passa a ser uma província do Império Assírio, que rebatiza a região com o nome de Samaria. Judá, sob reinado de Acaz, torna-se estado vassalo do império Assírio e não é invadido. É nesse período que Jerusalém se torna o centro da religião dos israelitas e a elaboração dos textos ganha força. A escola Deuteronomista surge nesse período e os profetas escritores também, como Isaías e Miqueias. É nesse contexto de centralidade da fé e submissão política que Ezequias chega ao trono. Quando se trata de cravar uma data para a chegada de Ezequias ao poder há sempre uma controvérsia. Há historiadores que datam em 728 a.C., reinando em conjunto com seu pai, Acaz. Outros datam em 716 a.C., após a morte do pai e já passados seis anos da tomada do Reino do Norte pelos Assírios.

Ezequias é retratado de maneira muito positiva pelos textos de 2 Reis e 2 Crônicas. Nas narrativas de ambos os livros, Ezequias é apresentado como rei justo, fiel e que buscou unificar o povo em torno do templo de Jerusalém. Tal imagem sempre apresentada em contraste a seu pai, que foi infiel. No quando da celebração da Páscoa, narrado em 2 Crônicas 30, Ezequias manda chamar todo o povo de Israel e Judá. É interessante tal narrativa, pois ainda se refere ao Reino do Norte como Israel e mostra que Ezequias, mesmo sabendo da destruição do vizinho, não desconsidera aqueles para as celebrações da Páscoa em Jerusalém. É um movimento religioso e político muito perspicaz por parte do Rei de Judá.

A oração de Ezequias cumpre o propósito de reafirmar o valor da Lei de Deus para aquele povo que, vindo de terras distantes, haviam se distanciado dos caminhos de Deus. A oração é simples e direta, tendo um tema único: o perdão.

  • Que o SENHOR: a oração de Ezequias começa chamando Deus pelo nome, Javé. É preciso identificar a quem ele estava publicamente orando;
  • que é bondoso: aqui a primeira qualificação de Deus, Ezequias reconhece a bondade de Deus;
  • perdoe aqueles que resolveram buscar o SENHOR: o pedido de perdão vem fundamentado, eles buscam a Javé, por isso, não observe o não cumprimento da lei, mas sim os corações.
  • o Deus de seus antepassados: Ezequias está incluindo a todos na relação dos que pertencem ao povo de Deus, sem distinção do Reino do Norte e Reino do sul
  • mesmo que não estejam devidamente purificados conforme os padrões do santuário: Ezequias reconhece que não estão cumprindo todos os ritos, mas ainda assim estão dispostos a adorar a Javé.

Quero convidar você a olhar comigo a partir de três perspectivas temporais diferentes, para compreendermos o motivo deste pedido de perdão.

A primeira, a partir da realidade do tempo de Ezequias, onde a divisão dos Reinos e a queda do Reino do Norte era a marca daquele período, tendo causado uma divisão ainda maior entre os do Sul com os irmãos do Norte. A visão de que os norte não fazem parte do povo de Deus começou a se intensificar nesse período. A oração de Ezequias mostra que não há divisão, diante de Javé, pois todos são o povo de Deus.

A segunda, a partir da perspectiva temporal de quem redigiu o texto. Estamos falando do pós-exílio, período em que regressaram os exilados e se encontraram com os que haviam ficado. Neste contexto, como saber quem é povo de Deus? Os puristas intelectuais que mantiveram a memória redigida da fé em Javé? Ou seriam os remanescentes que, mesmo formado por maioria de iletrados, ainda assim permaneceram em Judá, louvando a Javé? Ou ainda, seriam os remanescentes do Reino do Norte?

A terceira, a partir da perspectiva cristã do presente século. Com tantas maneiras de se viver a fé cristã, quem está certo? Existe um certo? O que é o elemento central da fé da cristã que permite que possamos dizer quem é e quem não é cristão? Essa discussão volta e meia aparece no meio dos cristãos e é preciso firmar posição, não com intuito de afastar, mas sim de aproximar. Cristãos são aqueles que reconhecem Jesus de Nazaré como Filho de Deus e têm na mensagem do Evangelho a centralidade de sua ação. A partir daí, se inclui muita gente nesse barco chamado “Igreja de Cristo”.

Percebem que a preocupação nos tempos de Ezequias, no pós-exílio e nos dias atuais é a mesma? Também o foi nos tempos de Jesus por isso, encontramos Ezequias e Jesus alinhados num conceito que nos é muito caro:

  • aqueles que resolveram buscar o Senhor, o Deus de seus antepassados, mesmo que não estejam devidamente purificados conforme os padrões do santuário (2 Crônicas 30.19)
  • Mas está chegando a hora, e de fato já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade. O Pai procura pessoas que o adorem desse modo. Pois Deus é Espírito, e é necessário que seus adoradores o adorem em espírito e em verdade. João 4.19–24

Em espírito em verdade. Não era assim que o povo estava buscando a Javé, no tempo de Ezequias? Não é assim que o povo do pós-exílio buscava identificar quem era povo de Deus? Não é assim que também nós identificamos os cristãos em nossos dias? No entanto, tal qual os judeus do pós-exílio, perdemos ao longo do tempo a capacidade de acolhermos e sermos tolerantes para com os que erram. Como se os erros fossem marcas definitivas na vida da pessoa. Tornamo-nos tão observadores da lei e dos ritos que nos esquecemos que a vida vem antes do rito e da lei, conforme Jesus nos ensinou: O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado. (Marcos 2.27). Não somos chamados para determinar quem entra ou sai do Reino de Deus, mas sim para acolher todo aquele que, cansado e sobrecarregado, com suas impurezas e imperfeições, se achegam a Jesus através de nós e nossa comunidade de fé. Deus não está interessado no seu pecado, mas sim e como ele pode estar ao seu lado em cada momento de sua vida.

Quero finalizar recordando que a determinação da Lei era para que a Festa da Páscoa fosse celebrada no primeiro mês. O rei Ezequias sabia disso e sabia também da exceção para aqueles que estavam viajando ou “impuros”. Por isso ele enquadra toda a nação nesta exceção e celebra a Páscoa no segundo mês. Ele estava restaurando o culto do Senhor, e precisava de tempo para que todos chegassem. Não somos chamados por Deus para uma vida de compromissos eclesiásticos, mas sim para uma vida de compromisso com ele. Isto implica em cumprirmos sua vontade a qualquer tempo e em confessarmos nossos erros. Orar a Deus pedindo perdão deve ser o primeiro ato de cada cristão, todos os dias, em seu relacionamento diário com Deus. Sua graça e misericórdia nos garantem o perdão e o livre acesso ao pai. Seja essa nossa oração, hoje e sempre: Sara nossa alma, Senhor!

O presente texto foi escrito para a aula de Escola Dominical da Igreja Presbiteriana Independente de Tucuruvi, São Paulo, SP, em 18 de julho de 2020

Índice das aulas

O índice é atualizado no artigo da primeira lição.

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Giovanni Alecrim
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