Maternidade no Brasil: um panorama

De uma para todas
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9 min readJun 1, 2020

Por Andressa Antunes

“Talvez, se me perguntassem aos 7 anos se eu gostaria de ser mãe quando adulta, provavelmente a resposta seria sim. Porque 一 sem pensar 一 era a resposta adequada”. O relato de Juliana Quintela, 29, é o reflexo de uma nova discussão sobre o feminino: a maternidade compulsória. Este conceito tem como base a ideia de que as mulheres são induzidas à maternidade devido a construção social a que são submetidas, e não por instinto ou vontade genuína.

Há uma relação histórica entre a figura feminina e a maternidade. Um exemplo disto é a Vênus de Willendorf, famosa estatueta que remete à pré-história. Através da interpretação de objetos, fósseis e pinturas rupestres da época, foi descoberto que a fertilidade, neste período, era tratado como algo divino. Na sociedade Mesopotâmica, o padrão se manteve: mesmo com avanços na socialização da mulher, as características mais valorizadas na representação artística do sexo feminino eram ligadas a fertilidade e fecundidade.

Segundo a graduanda em História e pesquisadora de gênero Pâmela Camargo, a maternidade compulsória tem origem na burguesia, quando as crianças começam a ser vistas como forma de perpetuar as estruturas sociais criadas na época. “De alguma forma, as mulheres perceberam (mesmo que inconscientemente), que ser aquela que gerava outras vidas e ser responsável pela criação e educação das crianças, as manteria em um espaço de valor em uma sociedade que não as valorizava”, explica.

Entretanto, a visão das mulheres sobre a maternidade tem se modificado. É o que apontam as pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), que ano após ano tem revelado o aumento do número de casais sem filhos, juntamente com a diminuição de mães solteiras. Em 2018, segundo o instituto, a porcentagem de mulheres que não possuem planos de engravidar já correspondia a 14%. Os motivos para este crescimento são variados e vão desde o aumento da escolaridade e empregabilidade das mulheres até questões ambientais. Cila Santos, jornalista e criadora do portal Militância Materna, afirma que este cenário está diretamente ligado a conquistas do movimento feminista. “Mulheres que têm acesso a educação sexual e de maneira geral, que estão em sociedades mais organizadas e que permitem a ela um melhor desenvolvimento para suas vidas e carreiras tendem a adiar a maternidade porque entendem que ela pode se tornar um impedimento real para o progresso profissional e financeiro”, completa.

Não estou dizendo que as mulheres desistiram de procriar. Só acho que a maternidade que deixou de ser um propósito de vida para ser uma escolha. Quando fazem, fazem mais racionalmente. — Juliana Quintela, 29, graduanda em Direito

Acredito sim que as mulheres são induzidas a serem mães na nossa sociedade. Eu nunca fui afetada muito fortemente por isso, mas já recebi alguns comentários falando que eu sou “muito jovem” e que eu “vou mudar de ideia”. — Ariane Ribeiro Santana, 21, graduanda em História

“É o que se espera da gente quanto papel reprodutor. Quando as pessoas nos dão salários baixos que os dos homens, é porque temos a possibilidade de engravidar. E ninguém pergunta se a gente quer engravidar, já vem embutido essa possibilidade.” — Gabriela Brito, estudante de Jornalismo

O perfil das Mães Brasileiras em dados / por De uma para todas

O crescimento da maternidade tardia

Juntamente com o aumento do número de mulheres que não querem ser mães, pesquisas apontam uma nova tendência em relação a maternidade — a gravidez tardia. Segundo dados do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos do Ministério da Saúde analisados e divulgados pelo Núcleo de Inteligência da Folha, o número de mulheres que tiveram filhos entre os 35 e 39 anos de idade aumentou 71% nos últimos 20 anos. É o caso de Celeida Teixeira, que teve seus dois filhos após os 32 anos de idade. “O meu segundo filho veio quando estava mais preparada financeira e psicologicamente. A única coisa que me preocupava sobre a minha idade era a questão do filho vir com saúde ou o risco de acontecer algo comigo”, conta.

Aline Dini, jornalista e editora de conteúdo no blog Mãe aos 40 afirma que o aumento dos casos de gravidez tardia estão diretamente ligados a mudança da visão sobre o papel da mulher na sociedade. “Enquanto nossas mães e avós já tinham um roteiro de vida pré-definido, se casando e tornando-se mães muitas vezes sem sequer darem conta dessas ‘escolhas’, atualmente estamos cada vez mais independentes e donas da nossa voz.”, explica. Além disso, segundo a jornalista, o avanço da medicina também tem influenciado nesse crescimento. “Pesquisas mostram, por exemplo, que em 2018, o congelamento de óvulos triplicou. É como o congelamento de uma dúvida, de uma questão importante, que poderá ser retomada depois. O que permite que a mulher faça novas escolhas”. O Mãe aos 40 surgiu como uma ponte entre a informação e a realização de um sonho para Aline, que também é mãe. Através de entrevistas, matérias e relatos sobre a maternidade, a jornalista afirma que seu objetivo é esclarecer e informar com um olhar acolhedor à estas mulheres. “Quando se tem um sonho, deve-se lutar por ele. Não sou, no entanto, utópica em acreditar que toda mulher com 40 anos ou mais vai engravidar. Não se trata disso. Mas trata-se de respeitar e acolher esse desejo, apontando caminhos”, finaliza.

No entanto, mesmo com os avanços em relação à medicina e a busca de mulheres por uma gravidez tardia, optar por ter filhos após a fase mais fértil apresenta desafios. Médicos especializados em saúde reprodutiva feminina apontam que após os 35 anos de idade, a qualidade e quantidade dos óvulos produzidos pela mulher sofrem uma brusca queda. Com isso, muitas mulheres recorrem a outros métodos, como a fertilização in vitro. Porém, o acesso a eles depende de um alto investimento financeiro. Além da dificuldade em conseguir dar início a uma gestação tardia, Aline Dini também aponta outro dificultador na jornada destas mulheres: o preconceito. “Mais da metade das mulheres que chegam ao Mãe aos 40 já sofreram algum tipo de preconceito. Desde médicos que simplesmente desacreditam que elas podem engravidar naturalmente, sem ao menos pedir exames e fecharem um diagnóstico claro de infertilidade, até os próprios amigos e parentes”. A jornalista ainda aponta como a sociedade vê a gravidez tardia como um tabu ligado somente a mulheres. “Já vi casos em que fazem questão de perguntar à uma mãe de 43 ou 44 anos se a criança que a acompanha é sua neta. A sociedade é implacável com as mulheres. Um homem de 45 anos passeando com uma criança jamais será apontado como o avô dela. Já a mulher, sim”.

Maternidade e o mercado de trabalho

As mulheres têm conquistado cada vez mais espaço no mercado de trabalho, com níveis de escolaridade e empregabilidade em constante crescimento. Entretanto, quando engravidam, o cenário se torna outro. De acordo com um recente estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), cerca de metade das mães que trabalham são demitidas até dois anos após o final da licença maternidade. E muitas delas não voltam a ter emprego. Uma pesquisa realizada pela Catho no ano de 2018 apontou que 30% das mulheres deixaram o mercado de trabalho para cuidar dos filhos, percentual este que cai para 7% quando analisado a quantidade de homens na mesma situação.

Para Bruna Bronzato, bacharel em Direito pela FADITU e criadora do blog Advogando com filhos, é necessário que os empregadores e a sociedade entendam a atribuições da maternidade como uma vantagem curricular, e não o contrário. “Justamente por isso trabalho diariamente para levar uma mensagem à todas as mulheres: podemos ser o que quisermos sem deixarmos de ser mãe.” Para isso, ela compartilha sua rotina dividida entre a maternidade e advocacia no Instagram, com conteúdos para auxiliar e inspirar mulheres que querem voltar ao mercado de trabalho após a maternidade.

Entretanto, a advogada destaca que a mulher tem que ir atrás dos seus direitos trabalhistas, caso a demissão seja nitidamente motivada pelo preconceito. “A mãe deve procurar um advogado trabalhista para orientá-la sobre a melhor maneira de garantir seu direito de se manter na empresa por suas competências pessoais 一 ou até mesmo buscar um acordo com o empregador de forma que consiga conciliar as duas atividades. Caso a discussão continue e o preconceito também, cabe uma análise de possível dano moral”, completa.

Nos casos de demissão e busca por uma reinserção no mercado, a advogada recomenda a tentativa de acordo e sinceridade sobre a nova fase da vida que a mulher irá viver. “É importante deixar claro ao seu empregador quais serão as suas novas necessidades e também validar a maternidade. Levá-la a como um benefício nas suas capacidades. Seja em gestão de crises, solução de problemas, liderança e muitas outras capacidades que a maternidade pode te trazer. Seu gestor precisa estar atento às necessidade da mãe e da profissional, pois uma será complemento da outra”, finaliza.

Maternidade e romantização

Quando se fala no nascimento de uma criança, é comum que a primeira imagem que venha a mente é a de uma família feliz e realizada. A romantização da maternidade, apesar de pouco discutida, tem seus reflexos apontados em pesquisas sobre a saúde mental de mulheres que dão à luz. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a depressão pós-parto atinge cerca de um quarto das mães no mundo — e cerca de 20% destas mulheres não conseguem buscar ajuda para superá-la. Para debater sobre este tema, o De uma para todas entrevistou Marcia Neder, psicanalista e autora de diversos livros, entre eles “Os Filho da Mãe: luzes e sombra da maternidade”.

Marcia Neder, psicanalista e autora

A idealização da maternidade como a santa mãezinha tem uns 200 ou 300 anos. Como em toda idealização, a mãe despenca de santa a bruxa sem passar por sua humanidade, por sua condição humana. Há dez anos observei, nos meu livro “Déspotas mirins”, um fenômeno que tem se tornado mais e mais frequente: impasses vividos pelo casal porque o homem, cada vez mais, tem se recusado a ter filhos. “Casados… até que um filho nos separe”, dizia um deles sobre a pressão de sua mulher para que tivessem filhos. Ele dizia não ver a hora que teriam que se separar porque, decididamente, não queria filhos, não queria cuidar, não queria se responsabilizar por um outro ser. Eis aí, bem ao alcance de nossas mãos, uma face oculta do feminismo: com a divisão de responsabilidades pelos filhos, o homem passa a ter o direito a própria escolha. Tenho me esforçado para trazer à tona as forças psíquicas que co-determinam essa idealização da mulher como a única capaz de se encarregar dos cuidados do filho.

Cada vez mais se fala sobre o conceito de “maternidade compulsória”. De acordo com essa visão, as mulheres são socialmente condicionadas a maternidade desde a infância. Como a mulher deve lidar com essa pressão?

Investindo no próprio pensamento, nas reflexões pessoais que abrem espaço para muita conversa entre os parceiros sobre a decisão de ter um filho: como enfrentarão os inevitáveis problemas da desigualdade? A quem a lei concede o direito de uma licença para cuidar do bebê (licença maternidade)? A quem a sociedade atribui melhor remuneração salarial? Qual o valor da hora trabalhada por uma mulher dentro de casa, sem direito a descanso semanal ou férias? Se você não está a fim de esperar por uma mudança sem prazo para acontecer na nossa sociedade, melhor negociar tudo isso com o parceiro antes.

Além da pressão sob as mulheres em relação a maternidade, há também a romantização dessa função. Mulheres são vistas como as únicas capazes de exercer esse papel, e com toda a pressão posta sobre elas, surge a depressão pós parto. Como isso ocorre? Como lidar com essa romantização?

A depressão pós-parto pode ser secundária a uma depressão anterior e se relaciona com a ambivalência materna. Acho importante falar da vergonha e da culpa que a cercam, como cercam qualquer sentimento ambivalente da mãe em relação ao filho — as luzes e sombras da maternidade. “Boas mães não deprimem…”. Ela não é uma sentença de morte ou fracasso da relação mãe-filho. Mais uma vez é preciso lembrar que a mulher, como qualquer humano, vive mergulhada em suas próprias fantasias inconscientes dentre as quais a de um vampiro que a atormenta à noite é apenas um exemplo.

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