Das Coisas Nascem Coisas

A Metodologia Projetual de Bruno Munari

Fernanda Yuukura
Deadlines
9 min readJul 27, 2017

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Bruno Munari (1907–1998), nascido em Milão, foi artista, designer, escritor e ilustrador. Participou do movimento futurista e do movimento de arte concreta na Itália, recebendo diversos prêmios importantes durante a vida, como o Compasso d’Oro da Associazione per il Disegno Industriale, Prêmio Hans Christian Andersen e o Prêmio Gráfico Fiera di Bologna per l’Infanzia. Considerado por Giulio Carlo Argan como “expoente de ponta da cultura artística italiana”, dedicou-se intensamente às atividades didáticas. Dentre seus livros mais conhecidos no Brasil estão Design e Comunicação Visual (1968), Artista e Designer (1971) e Das Coisas Nascem Coisas (1981). Foto: Maria Mulas, Bruno Munari, 1980.
MUNARI, Bruno. Das Coisas Nascem Coisas. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1981, 388 páginas.

Das Coisas Nascem Coisas, obra sobre metodologia projetual do italiano Bruno Munari (1907–1998), apresenta em 388 páginas uma variedade de curiosidades, problemas, soluções e exemplos práticos, evidenciando a simplicidade de todo e qualquer problema quando se domina os conceitos, técnicas e procedimentos para sua resolução, além de destacar o design como uma peça fundamental em diversos campos e áreas de atuação, como a produção industrial.

De personalidade altamente investigativa e alto poder de síntese, Munari possuía uma maneira muito própria de projetar, subvertendo o sentido das coisas e transformando a ironia num método científico de trabalho. Desta maneira, o próprio livro reflete diretamente essa característica, dividindo o conteúdo metodologicamente em partes, mas que se conectam durante todo texto. De leitura fluida e bastante didática, apresenta uma organização um tanto quanto original em relação ao conteúdo e o modo como é disposto: diferentes fontes tipográficas e em tamanhos diversos para títulos, subtítulos, conteúdo e legendas, além de muitas representações visuais em fotos, desenhos técnicos de projetos, desenhos artísticos, fotomontagens, imagens de sistema gráfico de comunicação visual e esquemas. Trata-se de um texto que induz o pensamento crítico e incentiva a construção de novos conhecimentos.

As ideias do autor confrontam as concepções de senso comum do designer em criar algo a partir de uma ideia repentina, uma súbita inspiração ou improvisação sem método, enfatizando a importância da criatividade e a visualização de novas ou ainda não utilizadas dimensões no processo, sem dissociá-las dos conhecimentos sobre metodologia na construção de um objeto. O designer não deve procurar imediatamente uma ideia geral que logo resolva o problema proposto pelo cliente, pois segundo Munari, esse é o método artístico-romântico de arranjar soluções. Para que um problema seja solucionado de maneira eficaz, é preciso saber projetar:

(MUNARI, Bruno. p.12)

O autor, ao citar Archer em Método Sistemático Per Progettisti (1967), também define que “o problema do design resulta de uma necessidade”. Sendo o problema então uma necessidade não solucionada, antes de se iniciar o projeto é preciso definir e presumir sua possível solução. Tal ato, segundo Munari, requer experiência e técnica. Aprenda a enfrentar o problema simples que aprenderá a enfrentar o maior, pois o conhecimento do método projetual liberta, otimiza e facilita a compreensão de um problema aparentemente complexo e impossível de resolver, porém por muitas vezes simples. O problema em si contém todos os elementos para a sua solução e define os limites dentro dos quais o projetista deverá trabalhar. O método não muda muito, mas apenas as áreas, sendo necessárias adaptações e um número maior de especialistas e colaboradores para um grande projeto.

Primeiramente, começar pela definição do problema servirá também para definir os limites dentro dos quais o projetista deverá trabalhar e a exata função do produto. Munari define o método como “não […] mais do que uma série de operações necessárias, dispostas em ordem lógica, ditada pela experiência. Seu objetivo é o de atingir o melhor resultado com o menor esforço” (p.10), remontando o método cartesiano, criado por René Descartes em 1637 e que segue quatro regras básicas:

De forma geral, é muito importante que as operações necessárias sejam realizadas segundo a ordem ditada pela experiência (ou regras do método). Caso contrário, as chances dos detalhes importantes fiquem de fora são muito grandes e muito tempo também será desperdiçado corrigindo erros que não seriam cometidos, seguido de um possível fracasso, pois tendem soluções irrealizáveis tecnica, material ou economicamente. Uma vez definido o problema, é necessário analisar o tipo de solução que se quer atingir: Uma solução provisória ou definitiva? Uma solução sofisticada ou uma simples e econômica? Contudo, é recomendável analisar antes o que já foi feito, pesquisando dados recolhidos que podem fornecer orientações acerca do que se deve ou não fazer, para então colocar em prática a ideia de que tudo possa ser resolvido.

Após todas as referidas fundamentações, Munari resume o método de projetos de forma bastante simples e prática através do esquema:

Simplificando ainda mais, se obtém:

O autor ainda alerta que o designer deve sempre ter em mente que o esquema do método de projeto ilustrado não é fixo, completo, único e tampouco definitivo; é o que até agora foi ensinado através da experiência humana. O método-esquema é elástico e pode ser modificado desde que com evidências objetivas. Através da contribuição criativa à estruturação, pode-se obter o melhor resultado com o mínimo de esforço:

(MUNARI, Bruno. p.11)

A operação seguinte consiste em mais recolhimentos de dados, relativos aos materiais e às tecnologias que o projetista possui à sua disposição. O projetista fará uma experimentação dos materiais e das técnicas disponíveis, o que consequentemente obterá novos dados e estabelecerá relações úteis ao projeto. Nessa fase de experimentação, podem surgir modelos sujeitos à todo o tipo de verificação a fim de controlar sua validade. Neste momento, os dados recolhidos poderão ser trabalhados nos desenhos construtivos, parciais ou totais, que se destinam a realizar o protótipo. Estes desenhos devem ser executados de maneira clara e legível, servindo para comunicar a uma pessoa que possa ainda não estar consciente de todas as informações necessárias.

Ao longo do livro, diversas técnicas são usadas como ferramentas no momento de aplicação do método projetual. Esboços e desenhos servem para comunicar uma forma e/ou função e dar instruções sobre modelos ou detalhes de fabricação, assim como pode servir ao designer como um aporte pró-memória, para registrar algo que tenha em mente, que descobriu e queira modificar. Os modelos, por sua vez, possuem varias funções, podendo servir para fazer uma demonstração prática de testes de materiais. São eles que mostram escalas, a disposição arquitetônica ou a ambientação. O uso de modelos muitas vezes é mais eficaz que o próprio desenho para transmitir uma ideia, pois são elaborados para melhor satisfazer algum cliente que não consiga visualizar o objeto proposto ou projetado. Já uma ficha de análise pode ser bastante útil ao projetista a fim de conhecer as qualidades e defeitos de objetos de produção industrial. A lista de elementos varia e deve ser considerada de acordo com o produto, não servindo para todos os tipos de análise ou até mesmo em alguns casos será necessário que todos os elementos estejam presentes.

Munari desenvolve análises a partir do seguinte pressuposto: todas as ideias formuladas nascem, por assim dizer, de objetos e de conhecimentos pré-existentes na trajetória da humanidade. O conhecimento coletivo que move as pessoas, mesmo que não se dêem conta de tal pespectiva. Deste modo, o autor enfatiza que é possível humanizar as coisas sem coisificar a humanidade, sendo que “é justamente esse aspecto de projetar que leva em conta todos os sentidos do observador, pois quando ele se encontra perante o objeto ou experimenta, sente-o com todos os sentidos” (p.373). Munari também apresenta fundamentos interdisciplinares necessários ao conhecimento do designer e que devem ser levados em consideração no momento de projetar. A Biônica, ao analizar diversas formas orgânicas e geométricas presentes na natureza e estudar os sistemas vivos ou similares, objetiva descobrir processos, técnicas e novos princípios aplicáveis à tecnologia. A Proxêmica, por sua vez, é o conjunto das observações e teorias sobre o uso humano do espaço e suas relações, além de situações de contato ou ausência entre as pessoas, sendo bastante útil para otimizar o uso e a interação do indivíduo com o ambiente e entre si, evitando desgastes interpessoais. A Ergonomia — através das contribuições advindas do conhecimento da anatomia humana, da fisiologia e da medicina do trabalho — estuda as variadas maneiras de melhorar as condições dos trabalhadores em seus respectivos locais de trabalho visando principalmente a segurança e a redução de acidentes, atentando-se especialmente aos deficientes físicos.

Bruno Munari em seu estúdio em Milão, 1988. Atto Belloli Ardessi © Isisuf, Milan

Quando se projeta um produto ou uma “família” de produtos, por sua vez, é de grande utilidade levar em consideração a coerência formal das partes que formam o objeto e dos objetos que formam o conjunto. O ato de simplificar, um trabalho difícil e que exige bastante criatividade, consiste em resolver mais de um problema com a mesma solução. O ato complicar, por sua vez, consiste em acrescentar tudo e qualquer coisa que vier à mente sem preocupações com custos excedentes. Essa coerência baseia-se na repetição de elementos iguais que também podem possuir formas que permitam várias combinações do conjunto e geram unidade. Fenômenos ópticos freqüentemente são usados como função estética no campo do design, pois quando o olho humano percebe um conjunto de formas, tende a completá-lo com ligações imaginárias para dar unidade aos pedaços isolados ou espalhados. O reaproveitamento é outra questão fundamental a se levar em consideração, pois o material que permaneceria no meio ambiente passa a ser utilizado justamente por suas qualidades de indestrutibilidade, além de reduzir possíveis custos. Qualquer objeto pode ser transformado em outro, se observada suas características formais.

Diferente do objetivo principal em propor soluções que resultem em melhoria da qualidade de vida, muitos designers, ainda hoje, projetam apenas preocupados em produzir algo belo aos olhos, sem ater aos possíveis resultados desagradáveis aos outros sentidos ou à falta de relações formais com a anatomia humana. Pois, bem como diz o autor, se a função desenvolve o órgão, a não-função o atrofia, alertando ao possível homem do futuro deformidades decorrentes de diversos objetos mal projetados no presente. É necessário ter em mente que os seres humanos ainda possuem todos os sentidos, apesar de alguns estarem já em parte atrofiados ao comparar com os dos outros seres. E a freqüente persistência da indústria em criar falsas necessidades por meras funções consumistas de produção, venda e lucro agrava tudo ainda mais. Munari indica que “nesse caso, o designer não deve deixar-se envolver numa operação que se destina ao lucro exclusivo do industrial e ao prejuízo do consumidor” (p.30). Somada a todos esses fatores, a tendência do público em geral é valorizar mais o trabalho manual realizado em um projeto complicado e dispendioso que reconhecer o valor do esforço mental em simplificá-lo, uma vez que este ato é imaterial. O autor afirma também que essas falsas necessidades muitas vezes são alimentadas pela arrogância, pelo sentimento de falsa autoridade e domínio de algumas pessoas sobre as outras, sendo a manifestação da estupidez e da riqueza grosseira de quem quer impressionar àqueles que permaneceram pobres. A importância que se dá à exterioridade, com o triunfo da aparência sobre substância, é o que ignorantes admiram ou até mesmo invejam, resultando no errôneo uso de materiais dispendiosos sem melhorias das funções.

O livro carrega características atemporais, imprescindíveis a uma boa referência bibliográfica básica da área criativa e preza pela funcionalidade das coisas (sem rejeitar a ideia de que funcionalidade pura, sem valores estéticos e de estima, não serve para seres humanos), assim como apresenta um forte senso crítico social ao rejeitar o luxo e suas frivolidades em plena era do consumo de massas. Em suma, ideias puramente ligadas ao styling, modismos ou gostos correntes do público se distanciam do verdadeiro objetivo do design, que significa nada mais que indicar uma forma correta de produzir ‘objetos’ que executam as funções necessárias. E no final das contas, após todas as reflexões acerca dos processos cíclicos, metodológicos e projetuais, significa design o que das coisas nascerem coisas.

REFERÊNCIAS

ARCHER, L. B. Metodo sistematico per progettisti. Venezia: Editore Marsilio, 1967.

CosacNaify, Bruno Munari. Disponível em: <http://editora.cosacnaify.com.br/Autor/308/Bruno-Munari.aspx> Acesso em: 22 de Outubro de 2014.

MUNARI, Bruno. Das Coisas Nascem Coisas. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

Primavera Gallery, Bruno Munari. Disponível em: <http://www.primaveragallery.com/biography/munari-bio> Acesso em: 22 de Outubro de 2014.

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Fernanda Yuukura
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Designer, ilustradora, fotógrafa. Ao menos tentando.