Finados.

Débora Otoni
Debora Otoni
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4 min readNov 2, 2018

ou Antes do fim.

Em um tempo muito muito distante de nós, os que habitavam nesta terra tinham o costume de velar pelos seus mortos. Um rito. Dar presentes e rezar pelos entes queridos que já partiram. Vendo que muitos mortos não eram lembrados e não tinham família, os líderes clérigos daquela época resolveram então estabelecer um dia onde aquela comunidade se lembraria de todos os mortos. Instituído esse costume, o mesmo se espalhou, e chegou até nós como o dia de finados, 2 de novembro.

Ano após ano, milhares de pessoas adentram as portas do lugar mais temido por todos, com esperança de que através desse gesto tão simples e honroso, o de se lembrar; elas possam se reconectar, honrar e fazer algo por quem já se foi. O vazio e a saudade, regados pela crença e responsabilidade motivam cada um a prestar suas homenagens e fazerem suas orações de formas diferentes.

Para a maioria talvez, esse dia seja apenas mais um feriado. Eu particularmente, não vou ao cemitério nesse dia. Mas quando a tragédia e o destino me levam lá, eu faço questão sim de "visitar meus mortos". Passar pelas lápides dos meus queridos me ajuda a lembrar que do lado de cá toda dor ainda é por enquanto.

A morte não deveria só nos causar medo e dor. Ela deveria levar a gente a tomar algumas posturas diferentes diante da vida que ainda temos e que podemos desfrutar agora. Acho que a maior conclusão e resolução que podemos ter diante da finutude possa ser o desejo e a vontade de querer deixar boas lembranças para (com quem) convive com a gente.

Não deixamos de viver, mesmo quando a gente morrer. Nosso rastro, nossas escolhas, as consequências não resolvidas ficam. Nossa passagem por aqui deixa marcas nos caminhos e vidas das pessoas que trilharam pela nossa avenida.

Além de nos lembrar de que mesmo mortos estamos vivos de alguma forma na memória e na formação das pessoas, a certeza da finitude nos impulsiona (ou deveria nos impulsionar) a querer aproveitar o aqui, o agora. O hoje é o presente que precisamos desembrulhar.

Tudo é motivo
Pra que algo aconteça
Nem tudo a gente pode compreender
Uma consequência
É suficiente razão
Como explicar?

Se sei que vou morrer
Só não vou deixar de viver

Se vamos todos morrer
Então vamos tratar de viver

Nando Reis

Quando nos lembramos de quem já partiu normalmente nos vem sentimentos que nem a morte foi capaz de matar. Além da saudade e do vazio que insistem em chegar junto com a lembrança. A memória, o recontar da história ajudam aliviar a dor e o tormento da saudade.

Cada pessoa honrada, em dias como hoje, deixou sua marca — boa ou ruim, na vida dos que conviveram com ela. O fim de todos nós não pode nos paralisar, nos deixar estáticos, com medo.

A morte é assombrosa, assustadora; mas ela também é o que nos propulsiona a amar mais, a viver melhor os nossos dias. Ela nos ajuda a termos um momento de profunda reflexão — “Como estou vivendo meus dias?”; “O que dirão de mim quando eu partir?”; “Quais histórias eles irão contar?”.

Nossa relação com a finitude e com a falta não devem ser então a de desespero e rancor. Mas sim de gratidão, de intensidade no viver, de alegria na simplicidade, de amor e abundância em cada gesto.

Antes do seu fim chegar, aproveite seus dias! Viva a vida consciente das pessoas ao seu redor. Dê voz aos sem voz, enxergue os invisíveis. Abrace mais. Sente mais com seus amigos e com a sua família. Foque mais naquilo que nos une do que nas questões que nos separam. Tenha coragem de ceder para promover a paz.

Cada pessoa é um indivíduo
A diferença é que nos faz iguais
Mesmo que a gente pense parecido
Nem sempre é possível a gente concordar

Nando Reis

A morte pode ser um absoluto destruidor, uma prova da inutilidade humana, como diria o filósofo Jean-Paul Sartre; ou ela pode ser a prova de que a vida que vivemos aqui é apenas um eco, uma miragem do que está por vir. A morte aponta para realidades existenciais bem mais elevadas.

Se eu encontro em mim um desejo que nenhuma experiência desse mundo possa satisfazer, a explicação mais provável é que eu fui feito para um outro mundo…

Se nenhum dos meus prazeres terrenos é capaz de satisfazê-lo, isso não prova que o universo é uma fraude. Provavelmente os prazeres terrenos não têm o propósito de satisfazê-lo, mas somente de despertá-lo, de sugerir a coisa real.

Se for assim, tenho de tomar cuidado para, por um lado, jamais desprezar ou ser ingrato em relação a essas bênçãos terrenas, e, por outro jamais confundi-lo com outra coisa, da qual elas não passam de um tipo de cópia, ou eco, ou miragem.

(C. S. Lewis)

Antes do fim eu quero não temer o fim. Eu quero encarar todos os fins que precisar. Eu quero aproveitar o meu por enquanto. Eu quero deixar algo para que se lembrem de mim.

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