Finados.
ou Antes do fim.
Em um tempo muito muito distante de nós, os que habitavam nesta terra tinham o costume de velar pelos seus mortos. Um rito. Dar presentes e rezar pelos entes queridos que já partiram. Vendo que muitos mortos não eram lembrados e não tinham família, os líderes clérigos daquela época resolveram então estabelecer um dia onde aquela comunidade se lembraria de todos os mortos. Instituído esse costume, o mesmo se espalhou, e chegou até nós como o dia de finados, 2 de novembro.
Ano após ano, milhares de pessoas adentram as portas do lugar mais temido por todos, com esperança de que através desse gesto tão simples e honroso, o de se lembrar; elas possam se reconectar, honrar e fazer algo por quem já se foi. O vazio e a saudade, regados pela crença e responsabilidade motivam cada um a prestar suas homenagens e fazerem suas orações de formas diferentes.
Para a maioria talvez, esse dia seja apenas mais um feriado. Eu particularmente, não vou ao cemitério nesse dia. Mas quando a tragédia e o destino me levam lá, eu faço questão sim de "visitar meus mortos". Passar pelas lápides dos meus queridos me ajuda a lembrar que do lado de cá toda dor ainda é por enquanto.
A morte não deveria só nos causar medo e dor. Ela deveria levar a gente a tomar algumas posturas diferentes diante da vida que ainda temos e que podemos desfrutar agora. Acho que a maior conclusão e resolução que podemos ter diante da finutude possa ser o desejo e a vontade de querer deixar boas lembranças para (com quem) convive com a gente.
Não deixamos de viver, mesmo quando a gente morrer. Nosso rastro, nossas escolhas, as consequências não resolvidas ficam. Nossa passagem por aqui deixa marcas nos caminhos e vidas das pessoas que trilharam pela nossa avenida.
Além de nos lembrar de que mesmo mortos estamos vivos de alguma forma na memória e na formação das pessoas, a certeza da finitude nos impulsiona (ou deveria nos impulsionar) a querer aproveitar o aqui, o agora. O hoje é o presente que precisamos desembrulhar.
Tudo é motivo
Pra que algo aconteça
Nem tudo a gente pode compreender
Uma consequência
É suficiente razão
Como explicar?
Se sei que vou morrer
Só não vou deixar de viver
…
Se vamos todos morrer
Então vamos tratar de viver
Nando Reis
Quando nos lembramos de quem já partiu normalmente nos vem sentimentos que nem a morte foi capaz de matar. Além da saudade e do vazio que insistem em chegar junto com a lembrança. A memória, o recontar da história ajudam aliviar a dor e o tormento da saudade.
Cada pessoa honrada, em dias como hoje, deixou sua marca — boa ou ruim, na vida dos que conviveram com ela. O fim de todos nós não pode nos paralisar, nos deixar estáticos, com medo.
A morte é assombrosa, assustadora; mas ela também é o que nos propulsiona a amar mais, a viver melhor os nossos dias. Ela nos ajuda a termos um momento de profunda reflexão — “Como estou vivendo meus dias?”; “O que dirão de mim quando eu partir?”; “Quais histórias eles irão contar?”.
Nossa relação com a finitude e com a falta não devem ser então a de desespero e rancor. Mas sim de gratidão, de intensidade no viver, de alegria na simplicidade, de amor e abundância em cada gesto.
Antes do seu fim chegar, aproveite seus dias! Viva a vida consciente das pessoas ao seu redor. Dê voz aos sem voz, enxergue os invisíveis. Abrace mais. Sente mais com seus amigos e com a sua família. Foque mais naquilo que nos une do que nas questões que nos separam. Tenha coragem de ceder para promover a paz.
Cada pessoa é um indivíduo
A diferença é que nos faz iguais
Mesmo que a gente pense parecido
Nem sempre é possível a gente concordar
Nando Reis
A morte pode ser um absoluto destruidor, uma prova da inutilidade humana, como diria o filósofo Jean-Paul Sartre; ou ela pode ser a prova de que a vida que vivemos aqui é apenas um eco, uma miragem do que está por vir. A morte aponta para realidades existenciais bem mais elevadas.
Se eu encontro em mim um desejo que nenhuma experiência desse mundo possa satisfazer, a explicação mais provável é que eu fui feito para um outro mundo…
Se nenhum dos meus prazeres terrenos é capaz de satisfazê-lo, isso não prova que o universo é uma fraude. Provavelmente os prazeres terrenos não têm o propósito de satisfazê-lo, mas somente de despertá-lo, de sugerir a coisa real.
Se for assim, tenho de tomar cuidado para, por um lado, jamais desprezar ou ser ingrato em relação a essas bênçãos terrenas, e, por outro jamais confundi-lo com outra coisa, da qual elas não passam de um tipo de cópia, ou eco, ou miragem.
(C. S. Lewis)
Antes do fim eu quero não temer o fim. Eu quero encarar todos os fins que precisar. Eu quero aproveitar o meu por enquanto. Eu quero deixar algo para que se lembrem de mim.