Ensaio sobre a circunstância

Declama, Mulher!
declamamulher
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3 min readJan 30, 2023

A vida mora no detalhe, alguém me disse alguma vez.

E eu ali, sentada no canto do banheiro, que já me é tão comum, observava as gotas que, lentamente, escorriam pela parede de azulejos, há anos, amarelados. Repetitivo, e ainda assim, escandaloso. O ralo, empoeirado, aninhava, cuidadosamente, um maço de cabelos que caiam como caem as chuvas de março. Torrencial, e demasiadamente, mais do que o saudável. Mais do que deveria. Úmido e ilustre.

O espelho, manchado, falhava em me mostrar o que queria ver. E eu, desnorteada, buscava um reflexo do que fora há anos. Em vão. Nada se mantinha, e tudo, de maneira desconfortável, era novo. Ouvi seus passos ao longe, e quase não reconheci mais. O que antes era costume, agora era nada mais que mistério, daquele que falhamos repetidamente em solucionar. No ar, busquei, com desespero, resquício do seu cheiro, de maneira inútil, já que de fato, há muito, você não estava. Ou não queria estar, eu nunca soube distinguir. Eventualmente, os nossos detalhes abriram espaço para covas tão profundas que, em determinado momento, se tornaram improváveis de serem preenchidas. Nem toda terra do mundo bastaria.

Lentamente, deixei as gotas quentes e pútridas do chuveiro mal instalado escorrerem por minhas costas frágeis e marcadas pelos anos que em algum lugar de mim, acreditava serem muitos, ingênua. Queria lavar de mim tudo o que não me agradava, ainda que todos os detalhes fizessem parte do que sou. Queria lavar meus fragmentos mais densos, mais intrínsecos, mesmo que já não conseguisse alcançá-los. De fato, algumas coisas não foram feitas para serem vistas, ouvidas ou tocadas. Talvez nem sentidas, mas o que somos senão nossas mais puras, brilhantes e úmidas comoções?

Tudo naquele ambiente era resguardo e eu, miseravelmente, falhava em desbravar o novo. Afinal, como não se apegar a maçaneta que, de tantas mãos que uniu, hoje, tinha seus ornamentos com aspecto arcaico, como algumas memórias que carrego sem coragem de me desfazer. Da mesma maneira que o álbum de fotos na estante empoeirada da sala guarda lembranças que nada fazem além de habitar o limbo de um memorial que, indubitavelmente, jamais ousamos acessar. Ainda assim, queremos manter pela segurança de ter, ainda que de maneira fantasiosa e utópica. Afinal, o que seria de nós sem a infinita concepção de cenários intactos da nossa própria imaginação?

De fato, a vida mora no detalhe, e talvez eu estivesse salientando os de pouca, ou, honestamente, quase nenhuma importância e na densidade de um ambiente onde o meu eu despedaçava e gotejava repentina e incansavelmente pelos rejuntes mal acabados, era quase impossível tentar enxergar além. Mas a vulnerabilidade estática daquele momento, permeava minha visão, e a eterna dicotomia em que habito, lentamente perdia a cor. Todas as parcelas de mim, inclusive as que ainda preciso conhecer, em um piscar de olhos, me olham de volta, estarrecidas, pelo reflexo do espelho de moldura embalsamada.

Acomodada, naquele pequeno cômodo, tão particular, parecia uma alucinação querer sair sem me sufocar e, ainda assim, me peguei com a mão trêmula em direção aquela mesma maçaneta, que, subitamente, parecia excêntrica. Abri a porta para o vislumbre da vida que outrora fora cotidiana, e talvez nos menores detalhes nunca deixou de ser.

Afinal, a vida mora no detalhe, alguém me disse alguma vez, e do outro lado eu me perco nas infinitas sombras de um sol que não quer se pôr. O cheiro de café recém passado me leva em direção a um lugar acolhedor que em outra vida frequentei assiduamente. O vento preenche, ruidoso, um momento insólito que eu nunca tinha ousado perceber, e nos confins daquela paisagem casualmente atípica, eu vejo o renascer da lua.

A vida mora no detalhe, e com os olhos marejados, eu jurei para mim mesma nunca deixar de olhar para o lado, por maior e mais profundo que seja o abismo.

ensaio enviado por Fernanda Cavalcanti | insta: @fecavalcantim

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