[Hacking Fate] Uma alternativa à rolagem de dados

Igor Coura de Mendonça
The Horizon Walker
Published in
12 min readNov 27, 2016

Introdução

Esta série de artigos são ensaios sobre os conceitos e regras que definem Fate Sistema Básico. Fate é um jogo altamente customizável, ideal para campanhas flexíveis e dinâmicas. Nesse sentido, cada artigo revisará um elemento fundamental do sistema, analisando os motivos pelo qual ele existe e propondo uma ou mais alternativas, para Narradores que prefiram outras formas de lidar com seu jogo.

É uma proposta muito parecida com o famoso suplemento Fate Toolkit, ainda disponível apenas em inglês, só que o objetivo final é um pouco diferente: estes ensaios revisam a própria forma de jogar o sistema, um pouco além da simples mudança de regras.

Algumas vezes, os artigos podem ser concorrentes com ideias contidas no Fate Toolkit ou outros suplementos — sinta-se livre para misturá-las como quiser.

Para entender estes artigos, o leitor só precisará conhecer o livro Fate Sistema Básico. Cada novo artigo é modular e paralelo, ou seja, ele não parte do pressuposto de que o leitor conhece os artigos anteriores, e quando for preciso fazer referências a textos anteriores, elas serão devidamente explicadas.

Agora, vamos ao primeiro ensaio:

Fate RPG.de. Licença: CC BY 2.0.

1. Os dados Fate

Como muitos devem saber, Fate é um sistema de RPG baseado em um outro sistema original, o Fudge. Seu próprio nome, “Fate”, já foi uma sigla: F.A.T.E., que significava “Fudge Adventures in Tabletop Entertainment”. A maioria dos elementos do Fate são importados do Fudge, sendo que as grandes diferenças estão na criação de personagens mais dinâmicas e heróicas, a regra de Aspectos e a Regra de Bronze (recursos estes que tornaram o Fate um sistema muito único e original). Se você se tornou um fã de Fate recentemente, recomendo conhecer o Fudge (original em inglês ou a partir desta tradução para o português), que possui uma licença aberta e cópias gratuitas na Internet sem a necessidade de piratear nada!

Um dos elementos mais importante que o Fate manteve do seu antecessor foi sua rolagem de dados. Sim, os famosos “dados Fate” são também conhecido como “dados Fudge” para muitos jogadores. A rolagem consiste em quatro dados de seis lados que podem ter três valores (-1, 0 e +1) que geram resultados entre -4 a +4 (vamos chamá-la de 4df).

Com isto, tem-se um efeito interessante: as rolagens tendem a ser bastante estáveis, girando em torno do resultado +0. Literalmente, 23,46% das suas rolagens resultarão exatamente no valor zero. Assim, as chances de conseguir os resultados mais extremos, tanto positivos (+4) quanto negativos (+4) são bem menores, 1,23% cada. Para comparação, no Sistema d20, em que se rola um único dado de vinte lados, as chances de tirar 1, 10 e 20 são as mesmas (5% cada). Isto implica que, por um lado, o jogador fica mais seguro para conseguir vencer desafios medianos, mas tem bem menos chances de conseguir superar desafios maiores, ou tudo ou nada.

No caso do Fudge, esta rolagem é ideal, porque trata-se de um sistema que pensa em personagens mais mundanos, ao estilo de Gurps, que usa 3d6 em suas rolagens, ou até mesmo de edições antigas de D&D, em que personagens nos primeiros níveis eram realmente frágeis. Outro bom motivo para o Fudge usar os dados com -1, +0 e +1 como resultados prováveis é que ele dependiam muito mais da Escada de Competências para analisar o efeito das rolagens. Fudge era um sistema que previa personagens com fichas SEM números (como se o seu nível de Luta não fosse +2, ele podia ser simplesmente Luta “nível bom”). Assim, o + e o — eram signos bem relevantes para enxergar o quanto a rolagem navegava pelo nível inicial da perícia. É interessante também notar que o Fudge foi pensado com as características das personagens variando entre — 3 e +3, diferente do Fate que mal cogita perícias negativas no livro básico.

O Fate funciona um pouco diferente disso. Ele parte do pressuposto que as personagens são dramáticas, proativas e competentes, passando por situações que beiram o limite de suas capacidades. Assim, um pouco mais de aleatoriedade pode tornar as coisas bem mais interessantes.

Comparando as Escadas de Competência descritas em ambos os sistemas (nas respectivas versões nacionais), temos uma clara noção da diferença de perspectivas com relação a como serão os resultados dos testes!

Neste sentido: e se usássemos outra rolagem?

2. D6 positivo, D6 negativo

A alternativa aqui consiste em rolar dois dados: um dado irá somar positivamente seu resultado na rolagem, enquanto o outro conta negativamente, ou seja, subtrair seu valor do resultado. Em essência, um dado positivo menos um dado negativo.

Esta rolagem implica em certas mudanças em comparação com a rolagem original, mas ainda mantém toda a essência do Fate, e do próprio Fudge. Inclusive ela é prevista como uma das soluções para quem não tem os dados Fate disponíveis. Aqui ela é chamada de 2dO (dois dados opostos). Por enquanto, fica definido que os dados usados são de seis lados (+1d6–1d6), mas essa opção também será revista.

2dO = +1d6–1d6

Eis os principais pontos de atenção desta mudança:

2.1 Os resultados negativos e positivos continuam existindo, sem a necessidade de conversões.

Como dito antes, o Fate prevê soluções para quem não pode ou não quer usar os dados Fate. Mas boa parte destas soluções têm claramente uma aura de improviso, ou acabam por se tornam muito pouco intuitivas. Por exemplo: pintar os dados; converter resultados 1 e 2 em -1, 3 e 4 em 0 e 5 e 6 em +1; utilizar rolagens de porcentagem (geralmente usando dois dados de dez lados cada, um para dezena e o outro para unidade); entre outras. Existem, claro, as opções que retiram a rolagem de dados tradicional do jogo, como os roladores digitais ou o uso de cartas de baralho — tem mesas que preferem estas opções, inclusive.

Sugestão de como converter d6 tradicional em dados Fate.

No caso do 2dO, não é preciso conversões. Os dados sequer precisam ser de cor diferentes: basta que o jogador role um depois do outro. Ao somá-los, o valor resultante será entre -5 e +5, o que basicamente mantém o mesmo espectro de resultados similar aos 4dF, permitindo uma adaptação imediata e simples das regras.

2.2 Os valores máximos e mínimos ganham um nível cada, elevando as chances de resultados mais dramáticos.

Rolar 4dF gera resultados que variam de -4 a +4, enquanto 2dO gera resultados que variam entre -5 e +5. Este acréscimo de um nível na escada pode ser encarado como algo bem interessante. Primeiro, porque é mais intuitivo para pensar nos limites da rolagem, uma vez que -5 a +5 podem ser comparado com 0 a 10. Segundo porque o Fate é mais intenso que o Fudge: é um sistema que merece um pouco mais de possibilidades extremas desta natureza. Pense no -5 como um resultado 1 no d20, e o +5 como um 20: são números mais arredondados. Inclusive, estes números mais arredondados combinam bastante com sucesso (ou falha) crítico, um recurso bastante comum em outros jogos de RPG que garante benefícios para quem tem a sorte (ou azar) de rolar tal resultado. São histórias dramáticas, afinal, é lutar contra todas as chances faz parte!

(Como curiosidade: o 5 é um dos número que mais sofre o viés de dígito, problema grave em pesquisas e estudos de demografia, porque as pessoas tendem a arredondar em 5 e 0 quando falam de datas, o que exige técnicas complexas de tratamentos dos dados. E é surpreendente a quantidade de pessoas que não sabe a idade de pais ou filhos, e até a própria idade!)

2.3 As chances são mais variadas.

Ao rolar 2dO, não se preocupe, o resultado zero continua sendo o mais frequente (16,67%), mas se no 4dF quase 1/4 das rolagens vão resultar em zero, no 2dO pouco menos de 1/5 terminam assim. A maior mudança na verdade está nos outros resultados: a concentração em torno do zero fica bem menor. Ou seja, suas chances de tirar +4 e -4, por exemplo, sobem pra 5%, contra 1,2% do 4dF. Perto de 1% são as chances e conseguir resultados +5 e -5: remotas, mas possíveis.

Assim sendo, os resultados do 2dO são mais diversificados que os resultados do 4dF, ampliando um pouco a importância da rolagem.

Algumas estatísticas avançadas para nerds:

Comparação de propobabilidades entre 2dO e 4dF de cada resultado absoluto
Comparação de propobabilidades entre 2dO e 4dF de resultados igual ou maior

2.4 Efeitos extras com a rolagem.

Alguns RPGs gostam de acrescentar elementos menos binários na rolagem de dados, fazendo com que, além de sucesso e fracasso, o jogador também possa obter outros tipos de efeitos graças aos dados.

Por exemplo, um pistoleiro que acerta o tiro mas quebra a arma, um mago que invoca a magia mas traz com ela uma criatura de outro plano por engano, ou um guerreiro que erra o ataque, mas fica numa posição estratégica.

Jogos como Warhammer 3ª edição e o Um Anel inclusive usam dados com desenhos alternativos para representar esses efeitos. Já jogos como Dragon Age RPG usam combinação de resultados de dados comuns.

No caso do Fate, o empate e os sucesso com custo fazem um pouco desse papel. Mas dependendo do cenário, mesmo quando a personagem falha miseravelmente, ou acerta com excelência, outros efeitos podem ser interessantes de se incluir. O interesse aqui está em efeitos que dependem basicamente do valor nos dados, sem a conexão com modificadores.

Com o 2dO, abre-se uma nova possibilidade para a combinação de resultados. Principalmente dois resultados iguais nos dois dados (digamos, rolar 2 no dado positivo e rolar 2 também no dado negativo). Toda vez que algo assim ocorrer, algum efeito pode surgir.

Ou então valores dobrados (2 e 4, 3 e 6), valores mínimos e máximos (1 e 6), enfim, varia conforme seu interesse.

Exemplo 1: Façanha com a Perícia Luta

Ataque de oportunidade. Sempre que você fizer um teste de ataque com a Perícia Luta e consegue resultados idênticos nos dois dados, independente de ser bem sucedido no ataque você recebe um impulso com uma invocação grátis contra outro inimigo na mesma zona.

Exemplo 2: Efeito extra de estresses mágicos

Sempre que a personagem conjurar efeitos mágicos, caso ela obtenha resultados idênticos nos dois dados, ela acumula um ponto de estresses mágico, independente do sucesso da conjuração da magia. De tempos em tempos, o Narrador pode usar estes pontos de estresses mágicos para provocar consequências contra o conjurador, refletindo efeitos colaterais de se usar certos tipos de feiticeira — 2 pontos para consequências leves, 4 para moderada e 6para severa. Exemplo de Consequências são assombrado, cegueira, perda de controle, entre outras.

2.5 Rolagens duplas para aumentar as chances.

Um dos recursos que mais tem feito sucesso no novo D&D são os “advantages” e “disadvantages”, em que o jogador rola 2d20 e mantém o melhor ou pior resultado.

Com o 2dO, esse efeito fica bem interessante também: rolar 2x o dado positivo e manter o melhor resultado (e ainda assim rolar uma vez o dado negativo) poderia ser uma opção para Aspectos, por exemplo. Geralmente, o Fate desencoraja penalizar jogadores com rolagens dificultada, então talvez rolar 2x o dado negativo não seja uma boa opção.

Vale ressaltar que com os. 4dF também existe uma opção, similar ao “Roll & Keep”, sistema usado no Lendas dos Cinco Anéis. Nesse caso, você rolaria mais do que 4 dados, e manteria os 4 melhores. Mas não me parece muito interessante.

Exemplo 3: Nova forma de invocação de aspectos.

Além de poder invocar um aspecto para receber +2 de bônus no seu teste, ou para rerrolar os dados, o jogador pode optar por invocar um aspecto para rolar 2 dados positivos, e escolher o melhor valor dentre ambos para calcular seu resultado no teste.

2.6 Dados explosivos!

Este é um efeito clássico de vários jogos de RPG, e seus maiores exemplos no Brasil são o Storyteller e o Savage Worlds. Basicamente, consiste em rolar de novo um dado, caso seu resultado seja o valor máximo possível. Ou seja, ao rolar 6 um d6, o jogador poder rolar outro d6. Em geral, o resultado dos dados se acumulam, fazendo com que o sistema permita resultados cada vez maiores. Excelente para um jogo de heróis como a maior parte das campanhas de Fate!

Para o 2dO, seria bastante simples: se tirar 6 no d6 positivo, rola ele de novo e soma o resultado. Aí se isso continua indefinidamente ou não dependeria da campanha.

No 4dF esse tipo de situação fica um pouco complicada, mas ainda assim possível. Por exemplo, quando o jogador obter em todos os dados +1, ele poderia rolar mais um dado, e se sair um novo +1 ele rolaria novamente, até sair um resultado 0 ou -1.

Exemplo 4. Nova façanha da perícia Comunicação

Presença de Majestade. Quando você usa a perícia Comunicação para tentar impressionar um grande número de pessoas, caso role um valor 6 natural em um dado positivo, você pode rolar um novo dado e acrescentar seu valor como bônus ao resultado. Este efeito só pode ser usado uma vez por rolagem.

2.7 Outros tipos de dados.

Uma outra situação interessante que pode ser criada com o 2dO é a opção de mudar o tipo de dado: ao invés de se rolar d6, pode-se usar d4, d8, e até dados maiores.

Naturalmente que isto acarreta a um escalonamento dos resultados: — 3 a +3 com d4, -7 a +7 com d8, e por aí vai. Isto pode deixar o teste estranho demais.

Exemplo 5. Nova façanha da perícia Condução

Ás do volante. Em disputas, suas rolagens 2dO da Perícia Condução são realizadas com 1d8 de dado positivo e 1d6 de dado negativo.

2.8 Posturas diferentes com rolagens diferentes

O sistema de Warhammer 3a edição criou uma mecânica bem interessante, as “stances” (posturas, em português), em que a personagem poderia ser mais arriscado ou conservador em seus testes, e cada opção tinha desvantagens e benefícios. Mas neste sistema é preciso utilizar de dados de formatos diferentes, e seus dados não são simples de emular.

Um jogo de Fate poderia fazer uma regra similar, utilizando as duas rolagens distintas na mesma campanha: 2dO e 4dF. Quando o jogador quiser ser mais agressivo, rola 2dO, pois suas chances de conseguir resultados melhores são mais altas; porém, ao mesmo tempo, ele corre o risco de sofrer falhas mais graves. Quando o jogador quiser ser mais conservador, ele pode rolar 4dF e manter a perspectiva de que muito provavelmente sua rolagem resultará em algum próximo a zero.

Exemplo 6. Posturas em conflitos

Em todo conflito, uma personagem pode ser mais agressiva ou meticulosa, dependendo dos seus objetivos. A postura agressiva exige que seus testes sejam realizadas com a rolagem 2dO, enquanto que a postura meticulosa só pode rolar testes com 4dF.

Ao iniciar o conflito, cada jogador deve declarar sua postura. Alterar a postura no meio do conflito exige um turno (a personagem ainda pode se movimentar uma zona neste turno). Se quiser alterar a postura imediatamente, sem gastar seu turno (inclusive para realizar testes passivos nos turnos de outras personagens), o jogador deve gastar um ponto de Destino.

Exemplo 7. Novas Façanhas

Tomador de riscos. A qualquer momento, você pode sempre escolher rolar 2dO ao invés de 4dF antes de realizar um teste, desde que esteja diante de um desafio, disputa ou conflito dramático.

3. Conclusão

Este primeiro hack do Fate pode ter sido um pouco tecnicista demais, mas o tema exigia isto: escrever sobre rolagem de dados é mais complicado do que simplesmente demonstrá-las pessoalmente. A melhor forma de entender tudo que está escrito aqui é simplesmente pegar os dados por si só e rolá-los, e tudo ficará muito simples e claro!

Enfim, esta alternativa é boa para quem:

  • É nerd de estatísticas. Sério, se você curte discutir probabilidades, entre no site Any Dice e se divirta com inúmeras comparações de rolagens de dados diferentes (o link inclusive já prevê a comparação entre o 2dO e o 4dF).
  • Gosta de incluir regras baseadas em alterações das rolagens de dados. O 4dF é um modelo inovador e divertido, mas infelizmente ele é rígido quando se trata de variações na mecânica das rolagens. Acima até foram aventadas possibilidades, mas é difícil mesmo assim.
  • Quer efeitos mais dinâmicos ou possibilidades mais abertas. Os resultados com o 2dO tendem a ser mais drásticos que o 4dF, mesmo sem tirar toda a mecânica de escada de competências e média zero.
  • Quer probabilidades mais intuitivas. Novamente, é melhor experimentar do que ler: as chances em uma rolagem com 2d6 somados, mesmo que um positivo e um negativo, são muito facilmente assimilados pelo cérebro do que qualquer outra (exceto talvez porcentagens).
  • Não tem dados Fate.

É melhor descartar esta alternativa quem:

  • Não são adeptos a regras caseiras. Grupos mais ortodoxos podem ficar incomodados com uma mudança nas mecânicas que não foram planejadas pelos autores dos livros que eles usam na campanha.
  • Quer calcular resultados de forma mais intuitiva. É muito, muito simples pegar os dados com + e com -1 e retirá-los da mesa, ver quantos sobraram e acrescentar esse valor aos seus modificadores. Tanto que este é o sistema do Fudge para fichas de personagem que sem números.
  • Não gosta de mexer com as estatísticas. Role seus + e — feliz! Deus pode até rolar dados com o universo, mas ele sempre usa o mesmo tipo de dado.
  • Já tem muitos dados Fate bem legais de se usar!

Até o próximo Hacking Fate!

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