A pressão da mulher onipresente em “Como Nossos Pais”

Rodrigo Alves
DELÍRIO POP
Published in
5 min readOct 9, 2020

Minha relação com o filme começou quando eu precisei assisti-lo esta semana para concluir uma disciplina da faculdade, chamada “Estética e História da Arte”. Na ocasião, o professor havia pedido que escolhêssemos um filme a partir de sua lista pessoal de títulos nacionais disponíveis na Netflix e, assim, escrevêssemos uma análise crítica e estética dele.

O título deste logo me chamou a atenção na lista, pois tem o mesmo nome da famosa música composta por Belchior, que Elis Regina popularizou para todos nós. Inclusive, acredito que esse título foi escolhido, também, por conta de seu ano de lançamento, que casa mais ou menos com a idade da protagonista e supostamente com a de seus espectadores, que deveriam estar passando por questões parecidas com a da personagem. Enfim, procurei por uma breve sinopse na internet e, confesso, comecei a assistir com a expectativa super baixa. Mas acabei curtindo bastante e o achei gostosinho de assistir.

A correria do dia a dia

Então imagine São Paulo, nublada, você em seu trabalho estressante e, quando chega em casa, aquela bagunça: seus filhos, cônjuge, pais e suas questões pessoais se misturando com as de todos eles. Escrito e dirigido por Laís Bodanzky (Bicho de Sete Cabeças), “Como Nossos Pais” é um drama brasileiro, lançado em agosto de 2017, onde acompanhamos a vida de Rosa, interpretada por Maria Ribeiro (Tropa de Elite).

A protagonista Rosa, personagem de Maria Ribeiro

Rosa vive “ligada no 220v” em uma rotina cheia e automática, típica da cidade grande, bem como a maioria de nós. Em seu dia a dia, ela precisa se dividir entre as tarefas de mãe/esposa/filha/amiga/funcionária, sem qualquer tipo de ajuda, muitos menos a de seu parceiro, Dado (Paulo Vilhena). Assim como inúmeras mulheres, vemos que Rosa precisa se desdobrar sozinha e esgotar a sua saúde mental ao ter de equilibrar a criação de duas filhas pré-adolescentes, levar trabalho do escritório para casa, manter o casamento “perfeito” e lidar com as questões de seus pais da terceira idade.

Vemos como a protagonista inicia o longa com uma suposta vida e família perfeitas, mas ao longo da história conseguimos perceber junto a ela que aquela vida idealizada estava distante e sufocante. E não é preciso muito tempo de tela para perceber isso, pois logo nas primeiras cenas os conflitos da família já nos são apresentados durante um tradicional almoço de domingo (gente como a gente).

Still promocional para o cartaz de “Como Nossos Pais”

A personagem principal, em seus 38 anos, é bastante verossímil e carismática, apesar de iniciar o longa sendo apresentada como uma pessoa chata e “amargurada”, ela vai aos poucos ficando mais leve e tentando amenizar seus conflitos internos. Além disso, ela enfrenta todos os obstáculos, mesmo cansada psicologicamente. Sua mãe, Clarice (Clarisse Abujamra), é outra personagem de destaque na obra. Uma mulher em torno dos seus 70 anos, que criou os filhos sem muita ajuda do marido, e que escondeu por anos um segredo que é o pontapé inicial para os dilemas de Rosa. Além disso, Clarice é diagnosticada com câncer e decide nos mostrar como fazer disso um assunto “menos pesado”, mas com uma representação pouco emocionante. Entretanto, podemos ver cenas reconfortantes de reconciliação com sua filha, pois ambas passaram mais da metade da narrativa em conflito.

Apesar das questões apresentadas, eu disse que o filme é “gostosinho” de assistir, muito por conta da personagem principal e, porque, acabamos nos identificando muito com as cenas — mesmo que negativamente. A rotina automática e estressante, as questões com a família e com o trabalho, onde Rosa se sente frustrada por trabalhar em um escritório fazendo algo que não gosta para sustentar a casa, mas seu sonho mesmo era ser dramaturga. Não bastasse isso, a personagem se sente culpada e pressionada para manter tudo sob controle e realizar tudo com perfeição. E reconhecemos muito desse papel em nossas mães, avós e amigas também. Não somente, seu relacionamento e o sexo com o marido está ficando cada vez mais fraco e há um quê de traição no ar.

Rosa e Dado em uma cena-chave de discussão

O machismo do dia a dia

Além disso, podemos perceber que grande parte das questões presentes no filme são frutos de um machismo estruturado em nossa sociedade, onde a mulher, desde cedo, precisa ser onipresente e lidar com tudo sozinha, e não é valorizada por isso. Os personagens masculinos, como o marido de Rosa, seu irmão e seu pai, fazem muito pouco para ajudar suas parceiras (e filhas). Não ajudam em casa, mal trabalham e ainda se sentem no direito de curtir o tempo todo e cobrar atenção sexual da mulher, quando estes também não retribuem o prazer e atenção — e tudo isso é normalizado, assim como na realidade. Podemos ver como essa estrutura enraizada afeta, também, algumas mulheres da geração mais antiga, como a mãe de Rosa, que “passa pano” para o genro e o aplaude em tudo o que faz, mas desmerece todos os esforços da própria filha. Ainda hoje vemos esses papéis presentes ao nosso redor.

A luz e ambientação natural contribuem na relação com o filme e sua simplicidade estética

Conclusão

Por fim, acredito que o longa não nos passa nada de original e inovador, mas a forma cotidiana e fluida como é mostrado, é tão natural e simples, que conseguimos nos encaixar em pelo menos uma das tantas questões apresentadas. Isso se deve bastante à diretora possuir esse estilo estético simples. Ela foca bastante em mostrar o nublado de São Paulo e a vida em família dentro de casa, com uma luz e ambientação naturais. É conhecida também por usar pequenos diálogos e reviravoltas pouco mirabolantes, além de aplicar temas como o feminismo e o papel da tecnologia nos relacionamentos. A trilha sonora, por sua vez, composta por músicas que retratam as mulheres, casa bem com o filme.

Mesmo indo por caminhos previsíveis, “Como Nossos Pais” é um retrato convincente, com personagens bastante humanos e que nos faz refletir sobre nossa correria do dia a dia e, sobretudo, a posição de onipresente em que a mulher é submetida e as consequências disso. Ainda conseguimos perceber que o título também se aplica ao fato de que Rosa passa a agir com suas filhas, da mesma forma que sua mãe agia. E como a letra da música, ela busca viver e ter esperança em meio a realidade dura. Além do mais, seu final deixa um ar de nada resolvido, mas vai por um lado interessante ao não optar pelo relacionamento aberto (um dos temas abordados na história) como a saída fácil para salvar o casamento da protagonista.

O filme foi o grande vencedor da 45ª edição do Festival de Cinema de Gramado, levando seis prêmios: Filme, Direção, Melhor Atriz, Melhor Ator, Atriz Coadjuvante e Montagem.

Delirômetro: 👻👻👻👻/5

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