O poder da mídia e a representatividade em “Veneno”

Rodrigo Alves
DELÍRIO POP
Published in
5 min readOct 24, 2021

Até onde a mídia vai para alcançar o que deseja? Sua representatividade é de fato genuína? Dentre outros tópicos, é o que nos mostra “Veneno”, série espanhola dirigida pelo casal Javier Ambrossi e Javier Calvo, lançada em março de 2020, que tem como objetivo apresentar a vida e a morte de Cristina Ortiz Rodríguez, mais conhecida como “La Veneno”.

Belíssima capa de “Veneno” da HBO Max.

A produção ganhou maior destaque após sua distribuição pela HBO Max, sobretudo com o lançamento da plataforma no Brasil e demais países da América Latina, em junho de 2021. Eu fui uma das pessoas que conheceu a série dessa forma, com a chegada do streaming roxinho por aqui e os comentários positivos crescendo nas redes sociais. Assim, decidi dar uma chance, principalmente após ter terminado “Pose”, da FX — outra série incrível, repleta de representatividade e diversidade, igualmente importante para a comunidade LGBTQIAP+.

A construção de uma biografia

A trama é baseada em fatos, relatados na biografia “¡Digo! Ni puta ni santa. Las memorias de La Veneno”, de Valeria Vegas, que é, também, uma das personagens principais da adaptação, interpretada pela atriz Lola Rodríguez. Dito isso, a série nos apresenta à uma Valeria jovem, que idolatra a famosa La Veneno e ainda não se entende completamente como uma pessoa trans. Ao descobrir que sua ídolo está na cidade, a estudante de jornalismo decide buscar mais informações e conhece uma Cristina Ortiz aposentada e afastada das câmeras.

La Veneno original e a autora Valeria Vegas no lançamento de seu livro. Foto: reprodução.

Veneno, que sempre amou os holofotes, logo se anima pelo interesse de sua fã em conhecê-la e, juntas, embarcam na aventura de escreverem sua biografia, com a esperança de estar em alta novamente. E dessa forma a série dita seus 8 episódios, alternando entre presente e passado, através da construção do livro. Ao mesmo tempo em que Valeria dá voz à Veneno, que conta toda sua trajetória através de flashbacks, também acompanhamos o desenvolvimento da escritora nos tempos atuais, que passa a entender melhor sua identidade de gênero com o apoio de Ortiz e suas amigas.

Um tour pelo passado

Conhecida por ser uma das primeiras mulheres a tornar a comunidade trans visível na Espanha, La Veneno, que se reconhece como travesti, se tornou um ícone da comunidade LGBTQIAP+, sobretudo em seu país de origem. Na série, nós acompanhamos desde sua infância e adolescência conturbadas, no interior da Espanha, até sua vida adulta, em Madri, onde ela consegue viver sua verdadeira identidade e atingir à fama.

Durante sua trajetória, podemos ver o quanto sua infância de descobrimentos foi dura e repleta de preconceitos, que sofria principalmente de sua mãe. Já em sua vida adulta, Cristina vai para Madri e passa a trabalhar em um hospital, onde conhece uma mulher trans, que se torna sua inspiração. A partir disso, ela passa a juntar dinheiro para tomar hormônios e realizar as cirurgias que almeja. Ao expor sua feminilidade, Ortiz é desligada do hospital, onde seu chefe diz que seu “jeito” não condiz com a conduta do lugar. Dessa forma, ela passa a se prostituir nas ruas da capital espanhola.

Sem apoio da família, sem oportunidades de emprego e sem acesso à uma boa qualidade de vida, podemos ver de maneira clara o quanto a sociedade oprime e marginaliza as pessoas trans. Na praça em que Cristina trabalha, ela conhece a que viria ser sua melhor amiga: Paca La Piraña, interpretada pela própria Paca. É nesta praça onde ela ganha os holofotes, ao ser entrevistada por uma jornalista de um canal famoso da TV local.

Valeria, Veneno e Paca — o trio de amigas que protagoniza as maiores cenas de afeto da trama.

O estrelato

Após sua aparição inusitada na televisão, La Veneno vira febre na Espanha. Com seu jeito ousado, extrovertido e sem papas na língua, ela vira convidada fixa do programa para o qual deu entrevista. É aqui que vemos como a mídia pode ser uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo em que a TV deu destaque para Cristina, aumentando a voz e a visibilidade da comunidade na década de 90, ela também a usou como fonte de entretenimento enquanto pôde.

A visibilidade é de extrema importância para que as pessoas se sintam representadas, e isso é claro em Valeria, que assistia à La Veneno na TV quando criança e conseguiu se reconhecer melhor na vida adulta. Esse é o poder positivo da mídia. Apesar disso, é triste ver o quanto ela foi “jogada para escanteio” quando o programa não pôde mais usá-la e seu humor já havia se esgotado. Com isso, Ortiz caiu na depressão e esquecimento, não tendo recebido mais oportunidades posteriormente. Mostrando que quando a mídia não lhe quer mais, há um grande poder negativo. É perceptível o sentimento de que ela fora usada enquanto gerava audiência, tendo ali uma de suas únicas oportunidades, a qual foi descartada sem mais suportes.

No Brasil, podemos fazer um paralelo com a famosa Vera Verão, que fora utilizada de forma parecida na década de 90 até não dar mais, caindo na depressão, mas que também foi uma das pioneiras para abrir portas e dar voz à comunidade LGBTQIAP+ aqui no país. É um sentimento duplo, pois nos fica o questionamento: será que a mídia, naquela época, realmente quis dar espaço para essas pessoas ou só quis sugá-las para gerar audiência e lucro?

Não pode faltar na sua lista

“Veneno” é uma série que vale muito ser assistida, possui uma carga dramática e humor bem equilibrados e não pode faltar em sua lista de maratona, principalmente se você faz parte da comunidade. Ela mostra a luta das pessoas trans e como elas são tratadas, além de escancarar a falta de oportunidades. Mas também mostra que há o lado positivo quando você recebe apoio, carinho e, novamente, as mesmas oportunidades na sociedade.

E não para por aí: a série manda muito bem ao incluir uma grande quantidade de mulheres trans e travestis no elenco, mesmo algumas não sendo atrizes anteriormente e, até mesmo, amigas reais de Cristina Ortiz. Esse ponto é um grande diferencial e deu visibilidade para que essas pessoas possam contar suas histórias e serem chamadas para outras produções. A ambientação, como já dito, retrata a década de 90 fielmente, desde os cenários e figurinos aos programas de TV e trilha sonora.

Jedet, Daniela Santiago e Isabel Torres dão vida às diferentes fases de La Veneno.

O roteiro não fica para trás ao trazer um misto de realidade e fantasia para a trama, juntando as tragédias e aspirações de Veneno como se ela vivesse um conto de fadas. Deixo, também, um grande destaque para a caracterização das atrizes que interpretaram La Veneno, que ficaram incrivelmente idênticas à original, bem como a atuação excelente de Isabel Torres, Daniela Santiago e Jedet, que deram vida às diferentes etapas da trajetória de Cristina e transmitem com facilidade emoção, ousadia e perseverança. Sem falar na conclusão da obra, que humaniza ainda mais a história das protagonistas e emociona — de deixar os olhos marejados.

Delirômetro: 👻👻👻👻👻/5

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