O poder da perspectiva em “The Medium”

Carol Lima
DELÍRIO POP
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6 min readFeb 3, 2021

Histórias que abordam o sobrenatural, o oculto, sempre me fascinaram, ao mesmo tempo em que sempre me assustaram. Céu, inferno e vida após a morte são conceitos que povoam nosso imaginário, nos incitando a ponderar acerca, o que faz com que as possibilidades de interpretação sejam quase que ilimitadas. Filmes como “Spawn — O Soldado do Inferno” (1997) e “Constantine” (2005), ambos baseados em HQs, retratam o submundo e seus residentes demoníacos de formas distintas e interessantes às suas próprias maneiras, ao passo em que livros como “Belas Maldições” (1990) e “A Batalha do Apocalipse” (2007) possuem visões bem diferentes do que o reino de Deus e seus anjos poderiam ser, tanto em termos de personalidade quanto em sua burocracia.

Mas até o maior dos fascínios encontra seus percalços, este sendo a mídia interativa. Das grandes franquias que já abordaram regiões abissais, “Devil May Cry” (incluindo o reboot) foi a única que consegui perscrutar sem problemas, em muito pelo fato de que não procura se levar tão a sério. Mas obras como “Silent Hill”? Praticamente impossível. Ainda assim, não consigo não me sentir atraída pelas histórias ali contadas, pelas trilhas sonoras, suas ambientações e temas (já li, assisti e escutei muito sobre os 4 primeiros títulos). Até cheguei a jogar o primeiro SH, mas larguei assim que adentrei o colégio; a atmosfera ali é carregada ao extremo, então não consegui prosseguir por puro temor. Terminar “P.T.”, o Playable Teaser do finado “Silent Hills”, foi uma das experiências mais emocionalmente exaustivas, onde cheguei ao ponto de passar mal.

A síntese de todo o fardo carregado por Marianne

Mas esse histórico conturbado para com o tópico no mundo dos games não me impediu de antecipar “The Medium”, novo título de terror psicológico da desenvolvedora polonesa Bloober Team (“Layers of Fear”, “Observer” e “Blair Witch”), que retrata a médium Marianne numa misteriosa investigação entre dois mundos: o real e o espiritual. Lançado para Xbox Series X|S (Xbox Game Pass) e PC no dia 28 de janeiro, o jogo aproveita o hardware do novo console da Microsoft para pôr em prática uma ideia que o estúdio carregava consigo desde 2012, que era de justamente renderizar duas versões de um mesmo cenário ao mesmo tempo.

A confusão inicial é inevitável, mas logo você se acostuma a acompanhar ambas as telas

A mecânica é engenhosa, e mostra do que o SSD é capaz de fazer, principalmente quando existem saltos velozes de um lado para o outro. Ao percorrer trechos do Hotel Niwa, você precisa se atentar às duas telas e reparar se não existe uma memória a ser reconstituída, um item específico a ser resgatado, bem como realizar puzzles inventivos que necessitam da interação entre ambas as versões das inúmeras salas e corredores (e que às vezes pode exigir que foque em apenas uma para dar prosseguimento, mas com certa cautela; Marianne corre o risco de sumir para sempre caso fique muito tempo no mundo espiritual).

Reconstituir memórias serve tanto para resolver puzzles quanto para obter maiores informações da trama

Além disso, nossa protagonista possui outras habilidades inerentes. Absorver energia armazenada por itens no cenário para se defender de certas adversidades é uma delas (e extremamente necessária), mas Marianne também é capaz de levar almas em pedaços ou confusas com a própria situação para o descanso eterno. Todavia, nem todas são pacíficas e/ou compreensivas. Ao longo da narrativa acabamos nos deparando com uma certa criatura que irá nos atormentar por toda a jogatina: Papão (dublado pelo quase que onipresente Troy Baker, totalmente irreconhecível e amedrontador), um ser que consegue percorrer ambos os mundos, tornando essa jornada sobrenatural aparentemente simples num jogo de gato e rato diabólico.

A jovem Tristeza também é presença constante na trama

Mas não se engane: não existem lutas contra esse chefe ou outros seres vindouros. Você pode se proteger de um ataque do Papão se tiver energia absorvida (caso você seja visto durante um trecho em stealth), mas é só. E os outros confrontos se resolvem por meio de cutscenes e viagens esotéricas, o que não necessariamente torna tais momentos menos impactantes (bem longe disso, na verdade). Isso mostra que The Medium é muito mais uma aventura totalmente focada numa narrativa mais linear do que algo mais aberto e com mais idas e vindas, como o próprio Silent Hill.

A floresta possui uma trilha bem definida, logo não há como se perder

E menciono bastante essa franquia especificamente porque as inspirações são inúmeras. A câmera fixa, mas dinâmica (se movendo junto da personagem), o contraste do visual despedaçado do mundo espiritual em relação ao mundo real (ainda que grande parte da influência para tal surja dos quadros surrealistas do artista polonês Zdzisław Beksiński) e a atmosfera carregada e trilha sonora multifacetada, esses últimos que ficaram a cargo de Arkadiusz Reikowski (que trabalhou nos jogos anteriores da Bloober Team) e, sim, Akira Yamaoka (lendário compositor de Silent Hill).

Poderia muito bem ser um frame de um novo Silent Hill

Tudo isso conversa muito bem com uma história muitíssimo intrigante, ainda que previsível em certos pontos. Achar colecionáveis dos mais diversos pode parecer algo tedioso ou fútil, mas eles nos permitem acessar memórias de outros personagens que nos fazem entendê-los ou continuamente questionar a lógica do mundo ao nosso redor e o que diabos realmente aconteceu nesse hotel. Ainda assim, fica aquela sensação de quero mais (umas horas extras para maior desenvolvimento de certos pontos não faria mal algum). Além disso, o roteiro não se esquiva de retratar temas pesados (como pedofilia), e o faz com muita maturidade, ainda que possa servir de gatilho para algumas pessoas.

Momentos tensos não se fazem apenas com criaturas demoníacas

Mas toda a imersão proporcionada pela inventividade de sua mecânica e pela construção de mundo sofrem um bocado ao longo do caminho. Acabei me deparando com bugs e problemas de performance dos mais diversos. A taxa de quadros por segundo sofrendo uma baixa no começo de alguma cutscene e a renderização das texturas do cenário e dos personagens apresentando delay de segundos (principalmente ao carregar um save) foram os mais frequentes, do início ao fim. Outros mais incomuns, como um comando aparecendo onde não deveria (o que fez com que Marianne sumisse da tela quando pressionado) e um cenário inteiro sumindo e mostrando personagens escondidos dentro dele, ocorreram apenas uma vez durante toda a jornada.

O jogo está longe de parecer uma casa queimada por seus problemas

The Medium, além de ser um dos melhores títulos da Bloober Team, se mostra um grande jogo do começo de 2021 e um exclusivo necessário para o Xbox Series X|S. Ainda que apresente falhas, dá para sentir todo o amor que a equipe injetou nesse projeto, e isso vale demais. Com o gancho deixado na cena pós-créditos, a ideia de uma sequência é inevitável. E pode ter certeza que, caso veja a luz do dia, ela será recebida de braços abertos.

Delirômetro: 👻👻👻👻/5

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Carol Lima
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Um cérebro conectado a uma rede vasta e infinita que faz uns textos sobre a cultura pop e cria uns contos