Protagonismo feminino, terceira idade e ambientalismo em “Sobre os Ossos dos Mortos”

Rodrigo Alves
DELÍRIO POP
Published in
4 min readNov 9, 2020

Uma mulher difícil de lidar ou, na verdade, uma mulher que se coloca contra o que os homens impõem e fala o que pensa? A Sra. Dusheiko é uma protagonista singular. Forte, determinada e sem “papas na língua”. É verdade que não costumamos ver personagens principais (e femininas) da terceira idade, ainda mais quando elas não se encaixam no perfil de “vovó boazinha”.

Na história de Olga Tokarczuk, autora polonesa vencedora do Prêmio Nobel de Literatura em 2018, acompanhamos a rotina de Janina Dusheiko — ou apenas Sra. Dusheiko, que é como prefere ser chamada, pois odeia seu primeiro nome — uma senhora na casa dos 60 ou 70 anos. Além de viciada em astrologia e tentar descobrir o mapa astral das pessoas, ela é vegetariana, agnóstica e defensora da causa animal, preferindo a companhia dos bichinhos à de outras pessoas.

Os animais mostram a verdade sobre um país — eu disse. — A atitude em
relação aos animais. Se as pessoas tratarem os animais com crueldade, não
adiantará de nada a democracia ou qualquer outra coisa. (p. 81)

Tendo trabalhado como engenheira no passado, atualmente a personagem dá aulas de inglês e vive sozinha em um vilarejo distante que fica na fronteira entre a Polônia e a República Tcheca. O território é conhecido pela caça esportiva e por inúmeros casos de caça ilegal de animais, tópico que a principal luta fortemente para encerrar. Inclusive, ela faz rondas diárias nas florestas em busca de desarmar as armadilhas postas pelos caçadores. Além disso, o lugar funciona como um vilarejo de veraneio, onde os vizinhos só voltam às suas casas para as férias de verão, pois a região passa quase o ano inteiro cinza, fria e coberta de neve.

A capa colorida, pela editora Todavia, retrata bem a ambientação do livro

Com narração em primeira pessoa — algo que eu amo, pois torna a leitura mais próxima — , vamos logo descobrindo tudo o que a protagonista gosta, como traduzir poemas de William Blake e fazer mapas astrais, e o que ela não gosta de fazer, como socializar. Além disso, conseguimos saber tudo o que ela acha sobre as pessoas e aqui ficam as partes cômicas da narrativa. Ela dá apelidos (em sua mente) para todas as pessoas que conhece, de acordo com suas características. Seus vizinhos, por exemplo, são: o Esquisito, o Pé Grande e a Acinzentada. Eu achei isso genial e tudo citado acima contribui para tornar a Sra. Dusheiko numa personagem única e realista.

O pontapé inicial

A história começa quando o vizinho, Esquisito, encontra Pé Grande morto na casa ao lado e chama pela protagonista aos berros. Logo descobrimos que o recém falecido se engasgou jantando o osso de uma corça que acabara de matar. Não bastasse isso, Pé Grande tinha uma cadela que vivia presa e maltratada em sua garagem, que é resgatada pelos dois.

Alguns dias após o primeiro corpo, outro caçador aparece morto nas ruas da vila e sem sinais do possível assassino. Apenas vestígios de animais, como patas e pelos, são encontrados próximos do local. Assim, Janina começa a perceber um padrão e passa a se empenhar em desvendar esse mistério. Ela bola uma teoria de que os animais estão conspirando contra os caçadores do lugar, em busca de vingança. Todos da pequena região são suspeitos e fica difícil apostarmos em alguém.

Temas importantes com a dose certa de mistério e humor

A leitura do livro é tranquila e o mesmo possui 256 páginas, embora existam algumas palavras rebuscadas e alguns capítulos meio longos — o que me fazia parar a leitura por alguns dias. Mas, acabei me apegando bastante à Sra. Dusheiko e queria muito saber o desenrolar da história, pois novas mortes de caçadores vão surgindo. E, ao final, há um ótimo plot twist.

A autora consegue misturar mistério, humor, filosofia e temas importantes de uma forma excelente na obra. Assuntos como a solidão, a imagem da terceira idade, os direitos dos animais e o protagonismo feminino, são muito bem desenvolvidos. Vemos como Janina não teme em se impor e bater de frente com os caçadores, os policiais e seja quem for, para defender seus ideais, a natureza e nossos queridos animais.

Quase conseguia ouvir seus pensamentos. Na cabeça dele eu certamente era uma “senhorinha”, mas quando o meu discurso acusador se tornava mais impetuoso mudava para “velha”. “Uma velha maluca”, “louca”. Eu estava consciente de que ele observava meus gestos com aversão e avaliava (negativamente) o meu gosto. (p. 26)

A autora também relata bastante como o tratamento muda, sobretudo com mulheres idosas. Sempre procuram uma forma de invalidar Janina, quando esta expõe suas fortes opiniões. Em outras passagens, também conseguimos sentir a dor e raiva da personagem em cenas tristes de caça e descobrimos que a mesma já perdeu duas cachorras. Enfim, Olga Tokarczuk está de parabéns pela construção da protagonista e originalidade da história.

Capa da adaptação “Rastros” com seu título original

Além disso, “Sobre os Ossos dos Mortos” foi selecionado pelo jornal The Guardian como um dos 100 melhores livros do século e foi adaptado para o cinema no filme “Rastros” (2017), sob a direção das holandesas Agnieszka Holland e Kasia Adamik — mas ainda não tive a oportunidade de assistir ao filme.

Por fim, queria deixar uma pergunta boba para quem leu: como vocês imaginaram a aparência da Sra. Dusheiko? Eu só conseguia imaginar a Jamie Lee Curtis na continuação de “Halloween” (2018), com a nova versão “coroa badass” de Laurie Strode.

Laurie Strode, a final girl de Halloween, assumindo a liderança no filme de 2018

Delirômetro: 👻👻👻👻👻/5

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