Lucas Kircher
dellirium criativo
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2 min readSep 8, 2014

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Depois do almoço, um cafezinho e uma dose de desespero.

Existe algo de muito cruel em reuniões logo após o almoço. É um tipo de tortura usada pela máfia mexicana para retirar informações de cativos. Terrível, mas estava acontecendo. Pensei que até mesmo uma visita ao dentista seria mais agradável, mas já era tarde.

A coisa toda havia sido organizada por causa de uma campanha que voltou do cliente com uma quantidade absurda de alterações. Quando esse tipo de incomodação acontecia era natural encontrar um culpado. O RH agiu com rapidez. Verdadeiros abutres sobre a carniça. Carniça, carne, restos do almoço. Minha angústia só aumentava enquanto movimentos sincronizados da minha língua me mantinham no controle da situação, impedindo de abrir a boca e acabar com tudo. Eu estava indignado.

Um dia antes, o estagiário havia sido demitido. O motivo: bode expiatório. A desculpa: ele não estava de acordo com o perfil da equipe. A verdade: ele nem sabia que campanha era aquela. Eu tinha certeza de que estava passando por uma situação normal, mas ao mesmo tempo tão angustiante e injusta. Uma ira silenciosa crescia em mim enquanto eu seguia lutando em silêncio.

A monstruosidade do chefe falava e minhas feições iam mudando constantemente. Por dentro, uma luta tomava conta para não acabar com aquilo. O terror. A ira e inconformidade com a situação. Santo Deus, que angústia! Naquele momento eu era acuado somente por uma simples regra de etiqueta, pois minha paciência há muito havia acabado. A coisa era palpável. Não fiz nada e ele prosseguiu:

- O importante aqui é entender que houve uma falta de gestão no encaminhamento do projeto, faltou a ideia, a estratégia, onde está a lógica nessas peças? Assim não dá. Muito ruim gente. Quem fez esse título?

De algum lugar na mesa apontaram em minha direção. Rapidamente dei uma resposta pronta que jogou toda a culpa em outro setor e voltei a remoer a situação. A briga que seguia dentro de mim continuava a crescer. A discussão também crescia na mesa, enquanto a culpa seguia de uma lado para o outro. Por que não agi agora? Era a minha brecha.

Foi então que perdi o controle e aconteceu. Se fosse possível voltar àquele momento, eu poderia ver meu rosto tomar uma forma abstrata, nada humana. De fato foi uma transformação visível, tanto é que alguns membros da mesa me olharam com aquela cara de tacho sem saber o que dizer. No fundo pensavam, e com razão: que tipo de homem enfia meio punho na boca para arrancar um pedaço de carne de entre os dentes? Não importava, estava tudo solucionado. Naquele momento pude pensar com clareza. Maldito estagiário.

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