Guerra Fria da Democracia

Jonathan Madison
Democracy’s Sisyphus
10 min readFeb 25, 2022
Fonte: Wikimedia Commons (Cold War alliances mid-1975.svg)

“Em resumo, temos aqui [na União Soviética] uma força política comprometida fanaticamente com a crença de que com os EUA não pode haver modus vivendi permanente, que é desejável e necessário que seja rompida a harmonia interna de nossa sociedade, nosso tradicional modo de vida seja destruído, a autoridade internacional de nosso estado seja quebrada, se o poder soviético deve ser seguro”. O diplomata dos Estados Unidos George Kennan escreveu estas palavras num agora histórico telegrama, ao expor sua avaliação da União Soviética após a Segunda Guerra Mundial. O que se seguiu foi um conflito de mais de 40 anos entre as duas potências dominantes do globo. Armados com arsenais nucleares cada vez maiores, os dois impérios se viram incapazes de se enfrentar diretamente. Diante disso, sua rivalidade ideológica se transformou em ações clandestinas, golpes econômicos e pequena guerras que engoliu todo o mundo. Com o colapso da União Soviética em 1991, os Estados Unidos emergiram com uma hegemonia militar e política mundial inquestionável. O sistema ideológico ocidental sobreviveu onde o da URSS havia fracassado.

Agora um conflito novo, mas semelhante, começou. Possivelmente futuros livros de história registrarão que as guerras mundiais na era nuclear foram todas guerras frias, de qualquer maneira, a Segunda Guerra Fria começou. Assim como o assassinato do arquiduque Franz Ferdinand e a invasão nazista da Polônia, a invasão russa da Ucrânia cristalizou tensões e divisões que existem há muito tempo. Embora a Rússia seja novamente um rival dos EUA e do bloco liderado pela OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), desta vez eles são o parceiro menor da poderosa e ascendente República Popular da China. Esta guerra fria tem outro fator distintivo fundamental, sua divisão ideológica. No lugar do duelo entre sistemas econômicos capitalistas e comunistas, há uma divisão política entre sistemas democráticos e autoritários. O resultado desta Segunda Guerra Fria será, portanto, o túmulo da democracia liberal ou seu maior triunfo desde a Segunda Guerra Mundial.

Democracia x Autoritarismo

Análises excessivamente simplistas sugerirão que esta nova guerra fria pode ser concebida dentro de uma estrutura semelhante à antiga por duas razões diferentes. Primeiro, será sugerido que a China é mais uma potência comunista desafiando o mundo capitalista. Isso é incorreto, sendo que o comunismo econômico puro em qualquer lugar do mundo está morto há muito tempo. Desde a década de 1970, o governo chinês se afastou do comunismo tradicional e abraçou uma amálgama única que pode ser descrita como capitalismo autoritário, por falta de um termo melhor. O controle estatal ainda é abundante, mas o planejamento econômico central rigoroso e a coletivização não. A competição e a inovação são ativamente encorajadas dentro dos limites estabelecidos pelo Estado. Enquanto isso, as ideias e políticas socialistas alcançaram vários graus de aceitabilidade e implementação em todo o mundo democrático.

Segundo, alguns podem estipular que a Primeira Guerra Fria já foi uma competição entre democracia e autoritarismo. Um exame histórico facilmente desaprova essa afirmação. Embora ambos os combatentes primários, particularmente os Estados Unidos, afirmassem estar lutando pela causa da democracia, esta nunca foi mais do que uma preocupação secundária. Países em desenvolvimento estavam repletos de regimes corruptos e ou autoritários que foram apoiados pelos Estados Unidos por causa do compromisso desses regimes com o anticomunismo. O que foi o caso da ditadura militar no Brasil. Por outro lado, enquanto o autoritarismo fazia parte do comunismo soviético, a URSS sempre esteve comprometida com a expansão do sistema comunista e tinha pouco amor por estados autoritários que pertenciam ao seu viés ideológico.

Agora no começo da Segunda Guerra Fria, é evidente que as ideologias políticas esquerda-direita valem cada vez menos para explicar o que está acontecendo. A própria China e a Rússia são ideologicamente distintas e podem ser classificadas como distantes no espectro político, mas seu desejo de definir regimes autoritários como moralmente aceitáveis e politicamente superiores é o que os une. O Bloco Autoritário centrado na Rússia e na China conta entre suas fileiras um grupo ideologicamente eclético de países que inclui Bielorrússia, Cuba, Coréia do Norte, Síria e Venezuela. O outro lado, aqui denominado o Bloco Democrático, baseado nos Estados Unidos e seus aliados da OTAN, reflete um grupo ideológico igualmente diverso. Essa diversidade é ainda maior quando os países adicionais do Bloco Democrático da União Européia, aliados latino-americanos como o México e aliados asiáticos como Índia, Japão e Coréia do Sul são levados em consideração. O Bloco Democrático também tem alguns aliados distintos como Arábia Saudita e Turquia, que violam os princípios do bloco, mas à medida que a nova guerra fria se aprofunda, esses países provavelmente vão se estranhar no meio. A final, a ideologia conta por pouco, o que importa nesta nova guerra fria é o princípio político organizador do regime de um país, seja ele democrático baseado em limites de poder e eleições livres e justas ou autoritário com poder executivo arbitrário.

Pontos Quentes

Pode-se dizer que esta nova guerra fria está em pleno andamento por causa da invasão russa da Ucrânia, mas as áreas de conflito abrangem todo o mundo e já estão ativas há algum tempo. Além da Ucrânia, o local de maior tensão é Taiwan. Há tempo, os militares chineses fazem preparativos para uma futura invasão de Taiwan, ao mesmo tempo que os Estados Unidos e seus aliados traçam estratégias para sua defesa. A China tem várias razões estratégicas e razões econômicas para a conquista de Taiwan, mas também é de grande importância simbólica. Taiwan é o último remanescente de uma China não comunista e sempre teve o apoio vago dos Estados Unidos. A independência de Taiwan é um reconhecimento da hegemonia dos EUA em um território que a China considera seu. A subjugação de Taiwan sinalizaria de uma vez por todas que a China está no mesmo nível que aos Estados Unidos que não pode ser intimidada. Para os Estados Unidos, seria a morte do seu domínio global já em declínio. Taiwan é, portanto, fundamental para a nova guerra fria, porque pode levar a um conflito direto entre os principais combatentes.

Taiwan faz parte de um confronto da Segunda Guerra Fria que se reflete em eventos em Hong Kong e no Mar da China Meridional. Desde que o Reino Unido devolveu Hong Kong à China em 1997, a cidade serviu como um oásis de democracia e liberdades civis em um deserto autoritário. A partir de 2019, Pequim impôs restrições estritas à cidade e reprimiu brutalmente os defensores da democracia, apesar das objeções verbais dos líderes ocidentais. A China também empregou uma de suas ferramentas mais poderosas, a guarda de acesso ao seu grande mercado interno, para intimidar e silenciar os críticos ocidentais. Enquanto isso, a China tentou afirmar seu domínio sobre o contestado Mar da China Meridional construindo ilhas e instalações militares e ameaçando aqueles em transição pela região. Resultando em consequências diretas para vários países da região, incluindo Taiwan. Os Estados Unidos continuam a manter uma presença no mar e contestar as reivindicações chinesas e exercícios militares recentes viram vários outros membros do Bloco da Democracia ajudar na contestação do Mar da China Meridional. Recentemente, os Estados Unidos também concordaram em compartilhar sua tecnologia de submarino nuclear pela segunda vez em um tratado com a Austrália e o Reino Unido. Este é um movimento para fortalecer ainda mais a mão do Bloco Democrático contra a China e atraiu várias repreensões e objeções chinesas.

A gama de conflitos de poder coercitivo se estende além do domínio militar para a economia e atividades clandestinas, assim como ocorreu durante a Primeira Guerra Fria. Em 2018, os Estados Unidos iniciaram uma guerra comercial provavelmente atrasada com a China devido aos muitos abusos chineses da relação econômica entre os dois países. As empresas dos Estados Unidos começaram a se afastar lentamente da China à medida que a rivalidade se aprofunda. Tanto a China quanto a Rússia também fizeram esforços conjuntos para criar “economias-fortaleza” ou sistemas econômicos que são significativamente menos dependentes do Ocidente e, portanto, menos suscetíveis a sanções e pressão econômica pelo sistema econômico global que foi elaborado em grande parte pela liderança dos EUA após a Segunda Guerra Mundial. No futuro, é provável que a globalização seja revertida à medida que os laços econômicos espelham mais de perto as novas divisões políticas da Segunda Guerra Fria.

Na área das atividades clandestinas, a China e, em muito maior medida, a Rússia, lançaram campanhas de desinformação e interferência eleitoral com a intenção óbvia de desestabilizar países democráticos. Enquanto o caso mais famoso foi o auxílio da campanha de Trump por ações russas em 2016, a interferência eleitoral do Bloco Autoritário se espalha pelo globo, impactando Europa, América Latina e Ásia. Trata-se menos de escolher vencedores e mais de criar instabilidade e criar divisões entre as populações de países democráticos. Um cenário em que as principais nações democráticas se tornam exemplos da falta de confiabilidade das instituições democráticas, favorece o Bloco Autoritário.

Ainda assim, o conflito quente mais urgente e alarmante da nova guerra fria é a invasão russa da Ucrânia, a maior guerra europeia desde o final da Segunda Guerra Mundial. O que tinha sido uma rivalidade global em desenvolvimento foi forçado a se expor pela ação russa precipitada. Vladimir Putin parece ter acreditado na narrativa de seu próprio lado de que, cercada por divisão e ineficiência, as democracias cairiam em pedaços enquanto o dia do autoritarismo amanhecesse. Na realidade, ele provou que o Bloco Democrático, pelo menos por enquanto, estará à altura da tarefa. Os aliados da OTAN da esquerda, direita e centro nos Estados Unidos, Reino Unido, França e Alemanha trabalharam juntos primeiro para admoestar a Rússia e apoiar a Ucrânia, e agora para punir a agressão russa. Em seu esforço para reconstruir um Império Russo, Putin tornou seu país um inimigo inequívoco da maior parte da Europa e uma força de união para o Bloco Democrático. As sanções do Bloco Democrático, especialmente a decisão alemã de suspender um importante gasoduto russo, traçaram uma linha definitiva entre os dois lados e aceleraram ainda mais sua separação econômica. Apenas a China apoiou os russos, sem dúvida com vistas a uma futura invasão de Taiwan. O palco está montado e os jogadores estão em posição, a Segunda Guerra Fria começou.

Competição de Liderança

Embora os conflitos militares chamem muito a atenção, o campo de batalha da persuasão é talvez o mais importante nesta nova guerra fria. Como na Primeira Guerra Fria, isso acontecerá em grande parte nos países em desenvolvimento, à medida que os dois lados se esforçam para convencer o resto do mundo de que seu modelo é o melhor. O Bloco da Democracia está determinado a provar que a democracia liberal prevaleceu na Primeira Guerra Fria por boa razão. Enquanto os autoritários insistem que apenas aqueles no topo são servidos pelo sistema atual e que o autoritarismo com liderança global emanando de Pequim e Moscou é o caminho para prosperidade. Os efeitos desse cabo-de-guerra já são visíveis nas alarmantes novas baixas da democracia global.

Por quase uma década, a China vem avançando em seu investimento estrangeiro, principalmente por meio de sua Iniciativa do Cinturão e Rota. A China tornou-se com sucesso um concorrente viável para cargos de liderança e influência na África, Ásia e América Latina, fornecendo empréstimos para o desenvolvimento, construindo infraestrutura e tornando-se um parceiro comercial importante. A China é o maior parceiro comercial do Brasil e entre 2007 e 2020 o Brasil recebeu mais de 66 bilhões de dólares em investimentos chineses. A partir de 2020, a China também ultrapassou os Estados Unidos como o maior parceiro comercial do mundo. Esta é a área onde a desastrosa política externa “America First” do governo Trump causou mais danos. A China tornou-se uma parte fundamental do desenvolvimento e construção de infraestrutura de países em todo o mundo ao mesmo tempo em que os Estados Unidos se retiraram e não ofereceram nenhuma alternativa. Agora, uma competição acirrada pela liderança global acontecerá com vários países anteriormente alinhados com os Estados Unidos, tendo laços significativos com Pequim.

A China não escondeu seus projetos de liderança global. O mundo acaba de testemunhar uma demonstração dessas ambições através dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2022 em Pequim. Muito comentado foi o contraste entre as Olimpíadas de 2008 e a demonstração de poder da China com seu lado mais suave em 2022 e o lema “Juntos por um futuro compartilhado”. Um boicote diplomático de vários países do Bloco Democrático na tentativa de chamar a atenção para os campos de concentração e abusos dos direitos humanos do regime local enfureceu a liderança chinesa. A China quer desesperadamente convencer os países decidindo entre os blocos de que eles são o melhor modelo para o futuro. O país dobrou seus esforços nos esportes de inverno e alcançou com sucesso um recorde nacional de nove medalhas de ouro e superou os Estados Unidos no quadro de medalhas. Mais importante ainda, a China fez da atleta Eileen Gu o rosto desses jogos olímpicos. Nascida e criada na Califórnia, mas representando a China, Gu era o símbolo perfeito. Mesmo entre as alegações ocidentais de atrocidades chinesas, aqui estava uma medalhista de ouro olímpico nascida nos Estados Unidos que preferiu alinhar-se com a China. É uma escolha que a China espera que muitos países façam no futuro.

Assim como a invasão da Ucrânia cristalizou a nova dinâmica da Guerra Fria no sentido militar, a Cúpula pela Democracia, promovida pelos Estados Unidos em dezembro passado, fez o mesmo na frente da persuasão. A cúpula reuniu mais de 100 países, não incluindo China ou Rússia, para discutir a superioridade do modelo democrático e as formas pelas quais as democracias podem se melhorar. A liderança chinesa e russa denunciou furiosamente a cúpula e chegou a sediar seu próprio Fórum Internacional sobre Democracia. Mais uma vez, mais de 100 países receberam convites enquanto China e Rússia insistiam que seus países também constituíam democracias, apenas melhores. Embora a China e a Rússia possam tentar cooptar a linguagem da democracia quando conveniente, dado que seus modelos não incluem eleições livres e justas nem participação popular legítima, é seguro dizer que o autoritarismo sempre será o princípio orientador.

Conclusão

À medida que os tanques russos percorrem a Ucrânia e os avanços chineses na liderança global continuam, não há dúvida de que uma nova guerra fria mundial surgiu. Desta vez, encontra-se a linha divisória entre regimes políticos democráticos e autoritários. Como George Kennan percebeu no início da Primeira Guerra Fria, este é um jogo de soma zero. Um lado só tem sucesso quando o outro falha. A ordem mundial avançada por cada lado só pode existir se a do outro lado não existir. A coexistência pacífica de longo prazo simplesmente não é possível. Quem ganhará? Prever o vencedor de um conflito global é uma tarefa para tolos. Nenhum dos lados deve agir com confiança de que seu lado inevitavelmente prevalecerá, mas se a história for um indicador, ambos os lados em algum grau o farão. O certo é que a democracia liberal, abrangendo os direitos humanos e a participação popular no governo, é uma causa pela qual vale a pena lutar e, se necessário, morrer.

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Jonathan Madison
Democracy’s Sisyphus

University of Oxford PhD student in Global and Imperial History. I specialize in the study of democracy and the history of Brazil and the United States.