Quantas pessoas o capitalismo matou hoje?

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9 min readFeb 16, 2016
A revolta contra o racismo em 2014 e 2015 nos Estados Unidos: não é um caso isolado | Foto: Reprodução/Youtube

Fome e pobreza, perseguição política, conservadorismo religioso e intolerância baseada em “liberdade divina para o capital”. Até você terminar de ler esse artigo, algumas pessoas já devem ter morrido — e você nem sabe. Se sabe, ignora.

Chega a ser engraçado quando alguns “especialistas” apontam a quantidade de pessoas que o comunismo matou no século XX. Quando afirmamos que o capitalismo também matou, a resposta parece programada para desviar a acusação e culpar outros fatores. Afinal, quantas pessoas o capitalismo matou?

Para entender este fenômeno da negação e a completa hipocrisia por trás dele, precisamos analisar os números argumentados por tais pessoas sobre o comunismo. Geralmente, utilizam fontes baseadas na propaganda anti-comunista, como o site Global Museum on Communism — que não é uma fonte muito imparcial, na realidade. Nele, é possível encontrar seções como o “Hall da Infâmia”, onde estão as biografias de líderes comunistas como Lenin, Stalin, Mao Zedong, Ho Chi Minh, Pol Pot, Fidel Castro, “entre outros ditadores responsáveis pelo século de terror comunista”. A parte engraçada do site: eles também contam com uma “Galeria dos Heróis”, onde estão figuras como Ronald Reagan. É importante frisar o nome de Reagan para voltarmos a falar sobre ele posteriormente nesse artigo.

Através de um cálculo não divulgado, a organização afirma que o comunismo matou até hoje cerca de 100 milhões de pessoas. A China lidera o “ranking”, com o número estimado de 65 milhões de mortes, terminando com a América Latina atingindo o número de 150 mil vítimas. Claro, não divulgam fontes e nem o método utilizado para calcular o número. Afinal, contabilizar a morte de 100 milhões de pessoas é uma tarefa simples, não?

Pois bem. Baseando-se em números assim, os defensores fervorosos da “liberdade econômica” argumentam que qualquer ideologia que trace algum resquício de ideias marxistas ou até mesmo o keynesianismo (social-democracia) é tolerante com os crimes cometidos pelo socialismo real no século XX. Por exemplo, o presidente norte-americano Barack Obama, durante as eleições de 2008 foi acusado por diversas vezes de “assassino” por defender algumas medidas onde o Estado prevalece diante do setor privado, como o seu projeto de saúde pública, Obamacare.

O que esses capitalistas fervorosos não devem saber — ou simplesmente são programados para não admitir — é que o capitalismo também matou. E continua matando até hoje.

Histórica foto do policial sul-vietnamita Nguyễn Ngọc Loan executando o militante comunista Nguyễn Văn Lém, em Saigon durante a Guerra do Vietnã | Foto: Eddie Adams

Antes de qualquer coisa, não existe “negacionismo” aqui — diferentemente do lado de lá. É evidente que governos comunistas assassinaram opositores durante o século XX por determinados motivos, com o objetivo de estabelecer a predominância do comunismo em diversas regiões do mundo. O número exato? Nunca saberemos. Mas definitivamente não são 100 milhões de pessoas.

Agora, utilizando como base o possível formato de cálculo feito para determinar quantas pessoas “o comunismo matou”, faremos o mesmo com o capitalismo.

Começando com guerras travadas para deter o avanço do comunismo em países estratégicos, e também intervenções de Estados capitalistas em países do terceiro mundo que não admitiam sua política externa.

  • Guerra do Vietnã: Cerca de 3,5 milhões de civis e inocentes morreram com bombardeios e ataques norte-americanos no então Vietnã do Norte durante a guerra. Cerca de 1.176.000 de militares e guerrilheiros também foram assassinados. Se formos utilizar como base apenas estes números — ignorando a quantidade de militantes comunistas foram assassinados e perseguidos no Vietnã do Sul — , chegamos ao número de 4 milhões e 676 mil mortes por conta de “forças pró-capitalismo”.
  • Guerra da Coreia: Contabilizando as baixas do Norte, chegamos ao número de 750 mil mortos. Entre eles, boa parte de norte-coreanos civis e comunistas, além de forças chinesas e soviéticas.
  • Golpe de Estado na Guatemala em 1954: Em uma operação organizada pela CIA, chamada PBSUCESS, o presidente democraticamente eleito Jacobo Arbenz Guzmán foi derrubado do poder na Guatemala. Por conta de políticas que se baseavam em uma série de reformas com viés socialista, os Estados Unidos interviram na região, gerando o número de 250 mil mortes.
  • Golpe de Estado no Chile em 1973: Mais uma vez, um presidente socialista e eleito democraticamente foi derrubado com apoio militar e financeiro dos Estados Unidos — Salvador Allende. O legado deixado pelo novo governo chileno, autoritário e militarista, foi de milhares de mortes. O DINA (Direção de Inteligência Nacional), uma espécie de serviço secreto, matou cerca de 60 pessoas do GAP (Grupo de Amigos Pessoais de Allende), mais de 400 pessoas do MIR (Movimento de Esquerda Revolucionario), além de mais 400 membros do Partido Socialista do Chile e outros 350 do Partido Comunista do Chile. Em um relatório divulgado no ano de 2011, foram constatadas cerca de 40 mil mortes durante o regime de Pinochet. Ironicamente, foi Pinochet que deu andamento a um novo experimento capitalista — o neoliberalismo, que acabaria resultando na falência das estruturas do Estado, em busca de um livre mercado utópico.
  • Os “Contras” de Reagan contra a Nicarágua: mais de 30 mil civis foram mortos durante a operação dos “contras” utilizada pelo presidente Ronald Reagan na Nicarágua nos anos 80. O objetivo era derrubar o governo comunista popular e sandinista. Em 2011, o presidente do país, Daniel Ortega, pediu aos Estados Unidos uma reparação de guerra no valor de 17 bilhões de dólares.
  • Ditadura em El Salvador: durante o governo de Carlos Humberto Romero, aliado dos Estados Unidos e de ultra-direita, a população de El Salvador ficou sob uma repressão generalizada. Com apoio da CIA, mais de 70 mil pessoas foram assassinadas com a justificativa de tentar impedir uma revolução comunista no país.
  • Invasão do Panamá em 1989: Manuel Antonio Noriega, ex-agente da CIA e estadista panamenho, desobedece ordens vindas de Washington e decide governar o Panamá sem a interferência norte-americana. Em poucas semanas, uma invasão militar dos Estados Unidos destrói seu governo, causando mais de 3 mil mortes de civis por forças invasoras.

É claro que não vamos conseguir contabilizar todas as guerras durante o século XX das quais os Estados Unidos participaram com o objetivo de manter sua influência econômica capitalista. Em muitos países da África, por exemplo, é impossível determinar uma quantidade exata de mortos — também por conta de que muitos combates persistem até hoje.

Porém, se somarmos os conflitos citados e detalhados acima, chegamos ao número de 5 milhões e 819 mil mortos.

Muitos podem tentar refutar afirmando que “não se tratava de uma guerra em defesa do capitalismo, e sim de interesses políticos”. Sim, foram situações travadas a partir de interesses políticos. Interesses políticos que tinham como objetivo não permitir o avanço da influência soviética em território dos Estados Unidos e Europa Ocidental, reafirmando um sistema econômico capitalista, independente de questões como liberdade civil e direitos humanos. Quando as pessoas se utilizam de dados para denunciar como o comunismo matou tanta gente, geralmente citam dados de opositores políticos mortos que defendiam um regime econômico de livre mercado. O mesmo deve valer para o outro lado.

Como já foi dito por diversos filósofos atuais, existe um fenômeno de negação sobre as mortes causadas pelo capitalismo. E as guerras citadas acima fazem parte disso. Mas outros fatores conseguem ser ainda mais explícitos, como a fome, por exemplo.

Quando debatemos o número exato de quantas pessoas morrem de fome por ano ao redor do mundo, geralmente homens engravatados e brancos de Wall Street utilizam o argumento de que “não foi o capitalismo que matou” essa quantidade de pessoas, e sim circunstâncias. Por exemplo: guerras civis, conflitos entre tribos locais, doenças, etc. Ou seja, o capitalismo é blindado por diversos outros fatores que escondem o motivo real dessas mortes, que é a interferência de governos ocidentais no continente africano, visando apenas o lucro de suas gigantes corporações, utilizando a África como laboratório. Empresas farmacêuticas, multinacionais da indústria bélica, entre outros. Ironicamente, quando falamos sobre quantas pessoas o comunismo matou na União Soviética, o número de mortos pela fome durante a Guerra Civil é constantemente citado. Era uma guerra civil, o governo comunista acabava de tomar o poder, já havia fome antes. Onde estão as circunstâncias?

Segundo um relatório da ONG “Salvem as Crianças”, pelo menos cinco crianças morrem de fome a cada minuto. Dos países onde foram coletadas tais informações, cinco fazem parte do continente africano.

É claro, muitos países da África não possuem uma estrutura de sistema capitalista — boa parte vive em uma espécie de feudalismo. Mas não é este o ponto. A partir do momento em que esses países vivem em função dos interesses de nações capitalistas estruturadas — através de suas multinacionais e corporações — podemos, de alguma forma, colocar parte da culpa dessas mortes no capitalismo. A aclamada meritocracia não existe por lá, justamente porque a partir do momento em que países como o Congo conseguirem se estabilizar, os negócios lucrativos de países capitalistas na África começariam a cair.

Na verdade, não é preciso ir muito longe para entender a lógica do capitalismo e sua conexão direta com autoritarismo, repressão, perseguição política e pobreza.

Graffiti em homenagem a Giuliani | Foto: Wikipedia

Ativista político, o jovem anarquista Carlos Giuliani foi assassinado pela polícia durante manifestações contra a reunião da cúpula do capitalismo, o G8. O caso ocorreu no ano de 2001, em Gênova. Giuliani foi atingido por um tiro de pistola, disparado de dentro de uma viatura policial. Em seguida, foi atropelado duas vezes pelo mesmo veículo.

Casos como o de Giuliani existem ao redor do mundo, seja em países desenvolvidos ou não.

Benno Ohnesorg era um estudante alemão de Estudos Românticos e Germanística, e foi assassinado em frente à Ópera Alemã de Berlim em 1967, por um policial com um tiro à queima-roupa durante uma manifestação pacífica contra a visita do Xá Reza Pahlavi, na Alemanha Ocidental. Benno era casado e tinha uma filha. Um ano depois, o líder pacifista Rudi Dutshke, ativista anti-guerra no Vietnã na Alemanha Ocidental, foi baleado alvejado com dois tiros na cabeça por Josef Bachmann, militante de extrema-direita. Rudi se recuperou e foi para a Inglaterra, temendo maiores represálias de movimentos fascistas. Lá acabou sendo expulso do país, dito democrático, por defender ideias anti-guerra.

Casos como o de Giuliani, Benno e Rudi existem aos milhares, desde o começo da Guerra Fria até os dias de hoje. São pessoas que optaram pela via pacífica para demonstrar sua insatisfação com o sistema capitalista vigente, e de diversos modos foram afetadas por forças do Estado e de extrema-direita. A repressão e a perseguição política são utilizadas por muitos adeptos do anti-comunismo como alguns dos “fatores de terror” causados pelo socialismo real no século XX. Claro, ignoram completamente quando os oprimidos pensam diferente deles.

Poderíamos ficar debatendo por dias e pesquisando por meses a quantidade de casos absurdos ocorridos em regimes democráticos e autoritários capitalistas. Poderíamos até chutar um número de mortes. Ou citar outros fatores como o racismo, xenofobia, machismo, fanatismo cristão e desastres como o de Mariana, causado pela ganância de empresas como a Samarco no ano passado.

O objetivo desse artigo não é “ver quem matou mais”, e sim demonstrar ao leitor que não existe bem e mal. O discurso hipócrita de setores de direita nos dias de hoje se baseia nos números de atrocidades que o comunismo cometeu no século passado, ignorando completamente a existência de atrocidades ainda piores acontecendo agora mesmo, por conta do sistema vigente baseado no corporativismo e pela ganância do capital.

Qual a alternativa diante disso? A da reflexão, passo por passo. Passos curtos, mas bem dados, como o de Bernie Sanders e sua campanha anti-Wall Street e por uma medicina e educação gratuitas nos Estados Unidos. Os indignados na Espanha, e sua busca pelo fim da política de austeridade. Os movimentos por moradia e terra na América Latina, contra o autoritarismo e a repressão no campo. Precisamos debater alternativas, e não perpetuar atrocidades.

Texto por Francisco Toledo, co-fundador e fotojornalista da Agência Democratize

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