#20 Abelhas perigosas e paranoias

Carolina Bataier
Diário do fim do mundo
3 min readOct 23, 2020

Quando tudo isso começou, lembro de ler Matilde Campilho:

Não tenho medo de cair doente, tenho medo de fazer alguém doente.

Eu não, Matilde.

Digo, sim, sinto medo de fazer alguém doente. Mas igualmente me apavora a ideia de adoecer. Qualquer dorzinha, eu já me pego com santo. Agulha, hospital, soro, hora do remédio, Deus me livre, Virgem Maria me guarde, Omulu me proteja. Uma pontada na barriga e já me vejo deitada naquela máquina de tomografia do Dr. House, uma equipe olhando por trás do vidro, minha mãe aos prantos. Quando passo em porta de hospital, faço sinal da cruz. Três vezes.

Por isso, também, sigo no time dos persistentes no isolamento. Ainda não sentei em mesa de bar, não fui em festa nem restaurante, não vi meus amigos, há tubos de álcool em gel em todas as minhas bolsas, evito a cestinha do supermercado e continuo tirando os sapatos para entrar em casa.

Tomar sorvete continua sendo um grande acontecimento, embora já haja filas em algumas sorveterias. Ontem, depois da estratégia traçada — bolsa, máscara, álcool, uma roupa confortável para caso de fuga, trilhar mentalmente o caminho até um lugar tranquilo perto da sorveteria, onde poderia tirar a máscara e degustar a porção de alegria sem muitas pessoas ao redor (mas a uma distância favorável para o sorvete não derreter no caminho), eu fui.

Determinada, obstinada, vista fixa no horizonte, porque tem isso também. Cuidado para não cruzar o olhar com conhecidos, alguns querem abraçar, conversar de perto, apertar a mão e todas essas coisas inconvenientes em 2020.

Sorveteria fechada. A rua toda interditada por causa de um enxame de abelhas perigosas, era o que dizia a placa. Mas eu só percebi quando passei por baixo das faixas de isolamento e me vi diante de três homens com roupas de astronauta. Eu, no meio da rua vazia, diante da porta. Eles me olhando um pouco curiosos, um pouco perplexos. Eu pensando: caramba, vou ter que procurar outro lugar.

Achei, não era o que queria, mas já sai de casa, mesmo. Corri para a pracinha, o sorvete derretido escorreu pelos meus dedos, sentei num banco vazio. Uma mulher, sem máscara, cigarro dançando no tremilique da ponta dos dedos, andava dum lado pro outro diante de mim. Tragava de dois em dois segundos, soprava fumaça pra cima.

Esperei o momento em que ela jogaria o cigarro no chão, apagaria com a ponta da sandália e declamaria um poema sobre a brevidade da vida. Não aconteceu. Esperei me pedir uma informação (onde fica a rua João Manuel da Silva Costa, moça? —meu olhar nas gotinhas de saliva pulando da língua dela para o meu sorvete) e, no meio da resposta, ela desabar em choro, contar do abandono, da fuga de casa, da mala deixada na recepção duma pousada vagabunda na entrada da cidade. Não aconteceu.

Sobrou na ponta dos meus dedos o guardanapo melecado. O vento virou, uma nuvem cinza tapou o restinho de sol e eu ainda coloquei a mão grudenta no guidão da bicicleta, deus me livre tomar chuva numa hora dessas.

O sabor, nem lembro.

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