#29 É possível ter alguma alegria

Carolina Bataier
Diário do fim do mundo
3 min readAug 9, 2021

Eu gostava muito de viajar de ônibus. Com a pandemia, ficou chato. É difícil relaxar. Assustador, também, porque as empresas de transporte ignoram qualquer protocolo de segurança e enchem os carros.

Nestes dezesseis meses, desenvolvi estratégias, como esperar até o último momento possível para ter mais chances de escolher um assento sem ninguém ao lado. Levo spray de álcool na bolsa, espirro em tudo: cinto de segurança, braço da poltrona, janela.

Lanches, somente nas paradas, do lado de fora do posto, num cantinho seguro. Nada de pacote de biscoito de polvilho para mastigar durante a viagem, porque isso significa passar um tempo sem máscara, uma atitude totalmente inconsequente. Viajar de ônibus em 2021 parece absurdo: passar horas num ambiente pequeno dividindo o ar com 30 desconhecidos sem poder abrir uma janela.

A única alegria que me sobrou foi o prazer meditativo de olhar a paisagem correndo lá fora. Era assim que eu me encontrava — menos pela paisagem, mais para ignorar o desconhecido sentado ao lado com o braço colado ao meu — quando a Orquestra Sinfônica de Londres tocou Bolero de Ravel no meu fone e eu, com os olhos marejados, pensei: queria estar num teatro imenso diante de uma orquestra.

Nunca estive. Orquestras não despertam meu interesse a ponto de me levar a comprar ingressos. De súbito, sei que estar diante dos metais e cordas de uma centena de músicos deve ser uma das coisas mais bonitas da vida. Tão bonito quanto, depois de duas horas andando sob sol, chegar ao topo da Cachoeira da Fumaça, na Chapada Diamantina.

Lá, eu estive.

Foram três mil quilômetros, de kombi. No caminho, com raro sinal de internet, uma e outra notícia nos alcançavam pelas TVs dos postos de gasolina: tal cidade registra menos de 100 contaminados, a última vez foi em junho de 2020. Alguns hospitais vão retomar as cirurgias eletivas. A mortes estão em queda, apesar de ainda serem muitas.

Nas redes sociais, fotos dos amigos vacinados. Chorei com um vídeo, o rapaz dentro do carro levantando a manga da camisa e lançando meio sorriso para a enfermeira. Na trilha sonora, Caetano Veloso perguntando: “existirmos, a que será que se destina?”.

Quando alegria pareceu possível outra vez, lembrei da morte do meu avô, tem mais de dez anos. Saí de casa sem tomar café, só a roupa do corpo, dinheiro e documento. Passei a manhã numa rodoviária fria, esperando o primeiro ônibus. Meu pai me encontrou na beira da estrada e me guiou até o velório. Não derrubei uma lágrima diante do caixão. Foi chegar no sítio e ver a cadeira na varanda, o choro me rasgou o peito.

Veremos calçadas, balcões, janelas, mesas e cadeiras vazias. Eu espero que tenhamos coragem de olhar para essas lacunas e permitir que a dor chegue até os nossos ossos.

Em junho, num episódio do podcast Café da Manhã, Luiz Antonio Simas falou do gurufim, um velório com celebração. Eu concordo, Simas. A gente faz festa não porque a vida é boa, mas porque ela é difícil. Aos sobreviventes, eu desejo força, choro e alegria.

Está página começou faz pouco mais de um ano, sempre com a esperança de um dia acabar. Esse momento chegou.

Continuarei sem comer biscoito nas viagens de ônibus mas, em breve, elas me parecerão menos assustadoras. Já é possível olhar pela janela e sonhar com orquestras.

Em algumas horas, estarei vacinada. Seguiremos olhando nos olhos para nos reconhecermos por trás das máscaras, o tubo de álcool continua na bolsa, alguns abraços ainda irão esperar, mas, talvez, em breve, a gente possa fazer um carnaval.

*

Por aqui, dou meu primeiro passo rumo à alegria, com uma criação nova. Parachoque é uma newsletter para falar de gente. Uma vez por mês, enviarei por e-mail uma breve história. Quem me inspira a escrever são as pessoas que encontro pelos caminhos.

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