#10 do lado de dentro e chorando pouco

Carolina Bataier
Diário do fim do mundo
3 min readJun 10, 2020

Moro num condomínio de casinhas. Do outro lado da rua, vive o Pingo, um pintcher caramelo que todas as manhãs, quando uma das minhas vizinhas sai, aproveita a brecha do portão aberto e entra aqui. Ele passa de casa em casa instigando os bichos: briga com um gato, assusta outros, late para os cachorros e, quando cansa de criar tumulto, faz barulho pedindo para voltar à rua. Minha casa fica ao lado do portão e, assim, perto dos pedidos de ajuda daquele pintcher atrevido.

Hoje, Pingo vestia um casaquinho xadrez, azul e cinza e quase me deu um “bom dia, senhora” quando abri e devolvi a ele a liberdade. Mais uma surpresa da quarentena, virei porteira de um pintcher. Fico bastante feliz em, todas as manhãs, acompanhar a bagunça dele, mas digo isso para contar uma observação interessante sobre a escrita: com ela, eu domino a ordem dos acontecimentos, ou a importância deles.

Eu poderia começar falando da roupa do Pingo, do susto dos meus gatos ou do dono cachorro, um senhor simpático que me agradece todo dia quando abro o portão para o Pingo voltar ao lar do outro lado da calçada.

O recolhimento me fez observadora: do cotidiano, dos gestos dos meus gatos, da vida dos vizinhos, da escrita. Falei para alguns amigos: é como se estivéssemos num casulo, vivendo uma metamorfose imposta e dolorosa. Nós, privilegiados que seguimos trabalhando de casa, saindo só para supermercado e farmácia, estamos fechados num pequeno universo. Casa, gatos, trabalho, comida, louças, dores e alegrias.

Não existe um sentimento de gratidão pela quarentena. É cruel. O Brasil vive um velório. Hoje, dia 10 de junho, nos aproximamos das 35 mil mortes que poderiam, muitas delas, ser evitadas. No entanto, existe a mudança inevitável causada pelo recolhimento. O mundo não será mais o mesmo e nós, depois de tanto tempo fechados, tantos sustos e aflições, seremos outros também.

Uma amiga escreveu:

“estamos em 2020 e uma pandemia intimou a todos: voltem para suas casas e permaneçam nelas! Há quem tenha entendido que era somente a casa tijoloportaejanela, outros nem isso… E eu antes mesmo de entender, senti que era um momento de simplesmente parar a busca e desinvestir da ilusão (…)”.

Depois da louça lavada, chão varrido, bichos alimentados, livros organizados, roupas dobradas, tem a gente vivendo com nossas dores, ilusões e esperanças. Anteontem, quando tocou no celular “não se admire se um dia/ um beija-flor invadir/ a porta da sua casa/ te der um beijo e partir”, eu chorei, mas foi tão pouquinho. Nem soluço teve.

Ontem, quando li, na biografia da Fernanda Montenegro, a lembrança sobre um dos últimos momentos compartilhados com o marido, Fernando, companheiro de uma vida — na mesa de jantar, ele, memória confusa, pede para ensaiar uma peça de teatro— desceu pelo meu rosto uma lágrima murchinha, discreta.

Pensei, sabe, que choraria mais nestes dias. No entanto, tenho dado boas risadas com Pingo usando roupinha de inverno. Meu choro de agora anda abafado e algumas noites têm sido mal dormidas. Mora muita angústia nas emoções contidas.

Choro pouco, mas sei: as lágrimas grossas, em tempestade, virão quando eu estiver lá fora outra vez, cantando, dançando e abraçando gente amada.

Para ouvir:

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