#14: de máscara não se come picolé

Carolina Bataier
Diário do fim do mundo
3 min readJul 14, 2020

se você viveu os anos 90, deve lembrar de um padre famoso, como era o nome? ele aparecia no Fantástico e desmascarava fenômenos sobrenaturais. imagens de câmeras de segurança mostravam portas batendo, luzes piscando, espelhos quebrando. o padre assistia, com um risinho de canto de boca, e apontava as mentiras: era alguém bem escondidinho no canto da cozinha, um fio desencapado, um imã gigante atrás da porta. ou era tudo coisa da cabeça de alguém, ele explicava. o ser humano gosta de acreditar.

naquela época, ficaram famosos os parapsicólogos e eu fiz um curso com um deles. um senhorzinho simpático, falava manso e fazia a gente rir. era, também, padre e, com meia dúzia de palavras doces, convenceu minha professora de educação artística a conversar com um anjo. estávamos num semicírculo, ela e o padro no meio. ele tapou os olhos dela e falou alguma coisa no ouvido. eu vi a mágica, ops, ilusão, acontecer. aquela mulher, que toda semana me ensinava sobre cores quentes, frias e Salvador Dalí, acenou para um anjinho invisível. a gente só enxergava o chão de ladrilhos, mas ela apontava as asinhas, falava dos cabelos.

com aquela demonstração, o mestre da parapsicologia reforçou o que raul seixas já cantava no meu discman: a gente é humano, ridículo, limitado e só usa 10% da nossa cabeça, animal. nosso cérebro aprende, esquece, lembra, desenvolve fórmulas matemáticas, soluciona problemas, escreve histórias, faz música, sonha e engambela. a mente é capaz de nos enganar não só quando é induzida a ver um anjo, mas também quando está cansada (na verdade, a gente se engana o tempo todo, é só lembrar da última paixão. você esperou mensagens, fez planos e, no fim, nem era grande coisa, vai, mas isso é papo pra outra conversa).

pois então, depois de cento e tantos dias dentro de casa esperando por um futuro que não chega, a mais nova enrolação das mentes exaustas é a vida lá fora. o coronavírus segue matando, mas, de repente, perdemos o medo. são quatro meses em casa, nenhum progresso, nenhuma novidade sobre a vacina. até eu, que um mês atrás dei sermão em amigo por causa de festinha, cai nessa.

não foi grave, mas, no sábado, fugi para a praia. escolhi uma quase deserta, entrei no mar, senti a pele secar ao sol e Iemanjá levou para o fundo do oceano o ranço acumulado desde março. fique boiando, olhando o céu e avaliando as possibilidades de não voltar. uma casinha no meio do mato, uns peixes, umas bananas, pareciam uma boa ideia. a mente anda mesmo exausta.

foi um fim de semana atípico e arriscado, não recomendo. inclusive, reprovo. mas, inebriada pelo cansaço das paredes de casa, no domingo decidi tomar sorvete caminhando pelas ruas no fim da tarde. tracei o plano, vesti a máscara e parti para a ação. entrei na conveniência do posto de gasolina, passei álcool nas mãos, escolhi o picolé, tentei não entregar para o atendente do caixa mas ele precisava passar o código de barras na máquina, acompanhei cada gesto para intervir antes do rapaz colocar o picolé sobre o balcão, me distrai e ele colocou, olhei com cara feia, passei álcool na embalagem e na minha mão outra vez, desembrulhei tomando cuidado para evitar o contato da parte externa da embalagem com o meu pedacinho de felicidade congelada, sorri e lembrei que é impossível comer com a boca encoberta. fiz o caminho de casa com a máscara no queixo, mordiscando, amargurada, a casquinha de chocolate, desviando de todo ser humano. lembrei de quando, já adulta, comprei três mini guarda chuvas de chocolate. desembrulhei, com carinho, sentada no sofá, preparada para reviver os sabores da infância. com muita boa vontade, dei a segunda mordida só para ter certeza de que chocolate hidrogenado é muito ruim.

pelo menos a luz do fim da tarde estava linda. os raios de sol desenhavam riscos amarelados no horizonte, por trás da serra da bocaina. eu ouvi palmas. no jardim de uma casa, faziam uma festa de aniversário. passei na calçada bem na hora dos parabéns e não julguei, não. até tentei balançar a cabeça em reprovação, mas só fui capaz de sorrir e me sentir parte daquela alegria. não comeria bolo, nem brigadeiro, mas tinha meu sorvetinho. nessa hora, lembrei o nome: padre quevedo.

Para ouvir:

--

--