#15 ainda contamos os dias e os mortos?

Carolina Bataier
Diário do fim do mundo
3 min readAug 14, 2020

Escrevi o último texto faz um mês. Depois, abandonei todos os projetos pessoais. Esgotei. Meus amigos também, ninguém aguenta mais as telas.

Na rua, um casal ouvia as vantagens dos passeios de barco: este leva para três ilhas, este outro vai na lagoa azul, a moça apontava as fotos no cartaz pendurado na entrada da agência de viagens. O rapaz abaixava para ouvir a voz da atendente. De máscara, fica difícil mesmo.

O Centro Histórico está cheio de gente e as ruas cheiram arruda. Pensei nalguma benzedeira aplicando erva e fé para afastar o pior. Filipe sentiu cheiro de querosene. Qualquer coisa, menos o normal. Ou, como dizem, novo normal e se você prefere encarar assim, boa sorte. Eu me recuso. Tem mesas nas ruas, pessoas brindando taças de vinho, mas quem se fode é o garçom agachado ao lado da porta dos fundos, de máscara no queixo pra fumar um cigarro.

Pensei se os turistas se distraem e esquecem de cobrir o rosto, se são doentes terminais optando viver os últimos dias com algum prazer, se nada mais faz sentido naquelas vidas. Desconfio que quem faz turismo e brinda taças de vinho não se importa com muita coisa.

Cem mil pessoas morreram. Algumas, de todo modo, morreriam em breve mas, não fosse isso, poderiam ter celebrado mais um aniversário e segurado a mão de alguém no último suspiro. E eu quero ver você dizer “é assim, acontece” quando for a sua mãe. Penso se não leem as notícias, se apenas ignoram.

Eu não leio mais. De novo, o problema com as telas e, ainda, a impossibilidade de desviar do nome do presidente. Tenho tentado seguir os conselhos de Caio Fernando Abreu para atravessar agosto sem quebrar os pratos um a um no chão da cozinha. Eram os anos 90 e ele escreveu:

Para atravessar agosto é preciso antes de mais nada paciência e fé. (…) Angústia agostiana é coisa cultural, sim. E econômica. Mas pobres ou ricos, há conselhos — ou precauções — úteis a todos. O mais difícil: evitar a cara de Fernando Henrique Cardoso em foto ou vídeo, sobretudo se estiver se pavoneando com um daqueles chapéus de desfile a fantasia categoria originalidade… Esquecê-lo tão completamente quanto possível.

Imagino o que Caio diria ao ver Jair se pavonenado sem máscara.

No Whatsapp da minha família, a última é a do coronavírus na carne de frango. Passaram o dia debatendo, nenhuma conclusão. Eu só quero saber da vacina, pode ser russa, pode ser chinesa, pode vir embalada em plástico transparente com formato de carrinho, eu topo. No Whatsapp do trabalho, chegou a reflexão médico-filoso-tilelê do termômetro em formato de arma, certeiro na mente, naturalizando a violência; e os raios infravermelhos invadindo nossa glândula pineal. Lembrei dum estudante de filosofia que me falou sobre o absurdo de assistirmos programa policial enquanto comemos: a gente engole aquelas cenas — pessoas mortas, tiros, estupro — junto com o arroz e a farofa. Isso foi em 2005. Quinze anos depois, temos deus, família e armas como lema da mais alta autoridade deste país. Datenas e afins fizeram um excelente trabalho.

Aguardo vídeo do Dráuzio Varella explicando se o infravermelho afeta a glândula pineal. Enquanto isso, continuo meditando, dormindo muito, não lendo notícias, como aconselhou Caio, isso tudo também regula a glândula e a sanidade. A pistola-termômetro é só mais uma alegoria nesta catástrofe. Sinto saudades de quando a grande preocupação era o mês de agosto, boa sorte para todos nós.

--

--