#16 como não lamber os dedos

Carolina Bataier
Diário do fim do mundo
3 min readSep 2, 2020

Depois das fotos das praias lotadas no fim de semana, podemos abrir mão do último fiapo de ilusão de mundo melhor. Certamente, teremos mudanças. Mas são outras, mais sutis, práticas e algumas levemente humilhantes. Fiz minha lista de situações irritantes e, algumas, constrangedoras da vida neste antigo normal versão 2020 agora com máscara.

  1. Cheirar shampoo no supermercado. Tem um rótulo novo, óleo de coco com chá verde e você pensa: hmmm. Abre a tampinha, traz perto do nariz, opa, não tem cheiro, ah, a máscara. Quase encosta a mão no paninho perto do nariz para dar uma puxadinha, mas lembra que supermercado é lugar de grande circulação de pessoas e coronavírus, e mão na frente da máscara não se faz, melhor puxar pela lateral, mas se você quer cheirar, muita gente também já fez igual. E se o vírus pula do tubinho pro nariz? Melhor não. Desiste, leva o Seda Ceramidas.
  2. Abrir o saquinho plástico sem lamber as pontas dos dedos. Não desgruda, de jeito nenhum. Você lá, de olho nos tomatinhos cereja em promoção, e o saquinho sambando entre seu dedão e o indicador. Tenta com as duas mãos, chacoalha no ar, começa a suar o bigode por trás da máscara, a boca salivando, o cérebro entregando a luta, uma lambidinha só não faz mal, regra dos três segundo, o anjinho-atila-iamarino vencendo a briga, não pode, não, supermercado tá cheio de vírus. Você desiste e leva tomate italiano mesmo, cinco, todos rolando na esteira enquanto a moça do caixa te olha impaciente certamente pensando: por que não coloca tudo num saquinho, criatura? (Pelo menos, é sustentável).
  3. Balcão, nunca mais. Cinco meses depois, todo mundo já se permitiu pequenas flexibilizações. As minhas consistem em idas à praias pouco conhecidas (uma vez por semana, antes das 10 da manhã) e compra de pãozinho fresco na padaria. Mas, se não tiver pão pronto, não posso ficar esperando. E, o mais importante: nunca, jamais, encostar no balcão. Nem permitir que o saco de pão seja deixado sobre o balcão por algum atendente displicente e então, toda manhã, antes do prazer do pão quentinho, tem a pequena luta na padaria. A moça vem com o saquinho, eu acompanho os movimentos para estar corretamente posicionada diante dela na hora de me passar a mercadoria. Ela estende o braço, eu preciso ser ágil e pegar o pacote no ar. Estou cada dia melhor. Se pacote encosta no balcão, chegando em casa os pães vão todos para outra embalagem, e o vetor de corona, direto para o lixo. Deus me livre balcão de padaria.
  4. Máscara e óculos. Eu tentei o truque do sabonete e meio que funcionou, mas não totalmente. Se você não conhece, sugiro um Google. Talvez, se suas lentes forem menores, funcione. Mas eu escolhi as maiores lentes possíveis e agora a parte inferior delas fica sobre a máscara e o arzinho quente da respiração embaça, não tem jeito e sempre nos piores momento. Normalmente, quando estou pedalando em rua cheia de carros e lá vou eu desorientada pensando se é mais seguro colocar a mão nos óculos ou seguir sem enxergar.
  5. Ver as pessoas se abraçando nos filmes. Meu inconsciente sempre grita: Ooow, cuidado, ele saiu duma festa agorinha.
  6. Comer picolé. Porque picolé não é coisa que se leva pra casa e come depois. Picolé você compra na padaria, ou na conveniência, e sai comendo. Mas tem dois empecilhos: primeiro, a mão, que pegou dinheiro ou digitou a senha na maquininha onde todo mundo põe o dedo. Pode passar álcool, tudo bem. Mas, depois, tem a máscara. Ninguém come picolé de máscara, mas ninguém anda na rua em paz sem máscara e ninguém come picolé sem paz. Uma vez tentei e foi chato.
  7. Entrar em casa de sapato. A parte boa é que comprei uma pantufa.
  8. Afastar-se gentilmente de quem usa máscara no queixo. Cada pessoa, um estilo. Eu escolho lançar a expressão: não é nada pessoal, só questão de amor próprio. Mas, na verdade, queria ser do time: te acho meio babaca e prefiro distância. Talvez seja só questão de treinar mais o olhar para passar essa mensagem.

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