#4: galos e urubus

Carolina Bataier
Diário do fim do mundo
2 min readApr 20, 2020

Porque era segunda-feira, decidi experimentar uma nova possibilidade de rotina e fui ao supermercado pela manhã. Antes, fiz as outras coisas: alongamento dos braços e pescoço, três minutos de respiração profunda, cinco minutos de meditação, lavar o rosto com sabonete anti-acne, banho frio.

Eu não tinha tantos rituais, mas os tempos são outros. Alguém me disse: em situações inéditas, não há regras. Essa é minha oração, embora eu tenha acrescentado algumas regras ao meu despertar. É o ineditismo. Um mês atrás, não me sobrava tanto tempo nas primeiras horas.

Três quarteirões até o supermercado e, ainda assim, visto jeans e penteio os cabelos. É a única chance.

Sol morno, brisa fresca.

No fim de outubro, vim morar em Paraty. Há uma informação sonegada nos guias de turismo e blogs de viagem: nos últimos meses do ano, chove todo dia. Minhas roupas, quando cheguei, mofaram. As pessoas pediram calma: em abril, começa a ficar bom e maio é o mês mais bonito.

É abril e eu só saio de casa para ir ao supermercado.

Lá fora, os urubus são muitos. Pode ser resultado do meu olhar, mais atento, mais assustado. Sentados no topo do poste, dois grandalhões contrastavam com o céu azul.

Pode ser a sujeira acumulando pelas ruas.

O sol da manhã lembrou como é bom o calor na pele e, depois do almoço, sentei perto da sarjeta. No outro lado da rua, vi Odílio. Outro dia, saindo apressada para o trabalho, a corrente da minha bicicleta fugiu dos trilhos. Seu Odílio ofereceu ajuda, entrou apressado no terreno feito de oficina, caminhou entre os carros, voltou com um frasco embaçado por camada de gordura. Derramou óleo, girou o pedal, limpou as mãos num paninho: tá nova. Desde então, toda manhã nos cumprimentávamos: bom dia.

Da minha varanda, vejo a caminhonete verde água, o fusca marrom, latas e peças pelo chão, mas nada de Odílio nas últimas semanas. A ausência o colocou na minha lista de preocupações, junto dos meus avós, professores, antigos vizinhos e dois amigos diabéticos. A lista aumenta a cada vez que leio notícias sobre o vírus.

A oficina não tem muro, só uma cerca demarcando o limite da calçada. Moro num fim de rua, quase zona rural, talvez por isso veja muitos urubus.

Há um galo de lata empoleirado sobre o tronco onde Odílio engancha o pedaço de arame para fechar a entrada do estabelecimento. No Natal, a cerca estava enfeitada com bolinhas e papéis brilhantes. Hoje, no pescoço do galo, notei: há um colar de pedrinhas esverdeadas. De longe, pensei que fosse um terço. Depois, mais de perto, uma guia de orixá. Nada disso, só enfeite.

Ele tá aí de vigia, Odílio explicou.

A camiseta, justinha sobre volume da barriga, estava suja de graxa, como sempre. Os cabelos, entretanto, muito bem penteados.

Para ouvir:

***

--

--