#7 sentada no quintal descascando mexerica

Carolina Bataier
Diário do fim do mundo
3 min readMay 5, 2020

No finzinho da manhã, começa a me bater uma alegria porque vem chegando o melhor momento do dia: a hora de descascar mexerica no sol.

É o ponto alto da minha quarentena.

Sento do lado do portão, levanto a barra da calça pra modi deixá as canela no sol e vô puxano devagarzim a casca, sentindo o cheirinho do sumo se enfiando nas narinas.

Tem que ser depois do almoço, no melhor sol para aquela sensação de relaxamento-quase-delírio. É outono, é pandemia. O sol depois das 11 e antes das 15 está perdoado.

Esses minutos comendo fruta no quintal me lembram da Aparecida e da minha avó.

Eu chegava da escola, jogava a mochila sobre a cama, nem tirava uniforme, almoçava ligeiro e sentava no degrauzinho da porta da cozinha. Ficava ali, pensando em nada e deixando a pele arder, até sentir muito sono. Ouvia, atrás de mim, o som da Aparecida dando comida para minha irmã, ou lavando a louça. Ela falava uma coisa e outra comigo, eu respondia, era sempre uma bobagem: oh a cachorra hoje parece que tá rindo, dá um gominho de mexerica pra ela. Naquele tempo, era muito fácil pensar em nada. Quem tinha internet em casa só usava depois da meia noite. Então, nossa distração eram as coisas de casa, do quintal e da rua.

Minha avó, mesma coisa. A gente ficava horas bronzeando as canelas e descascando mexerica. Jogava longe as cascas, ria das galinhas procurando bichinho no chão. Hoje, ainda, a gente faz isso, mas agora, eu cá, ela lá. Na minha rua tem galinhas, também, e elas passam no portão nas horas de sol alto, outro motivo para ser esse um bom momento de fazer nada lá fora.

Nos tempos quando nos víamos todo dia e eu falava de festa de aniversário ou da árvore do próximo Natal, minha avó dizia: “se eu tivé viva inté lá…”. Qualquer conversa sobre futuro começava com essa frase. Depois que fez 70 anos, ela abandonou o bordão.

Muito boas de conversa, Aparecida e minha avó. Eu vou só dando assunto e rindo, queimando as palavras no solão do meio dia.

Ouvi, em algum jornal, a comparação sobre o tempo do mundo e a quarentena: é como se a gente tivesse descendo uma ladeira, a toda velocidade, de repente, paramos. Sem aviso, sem reduzir a velocidade. Parou brusco.

Eu trabalho de casa. Cozinho, lavo, passo, escrevo, cuido dos gatos, das plantas e, ainda assim, senti dificuldade em entender as horas que sobram. Viciei no aplicativo de aprender línguas, todo dia faço muitos minutos de tarefas em espanhol para me manter nas primeiras posições do ranking semanal. Li três livros, comecei mais um, abandonei dois, encapei, com recortes, uma caixa de papelão. Vou inventando coisas.

Mas bom mesmo é sentar no quintal pra descascar mexerica, tomar sol na moleira até delirar e esquecer por uns minutinhos que isso só é possível porque o mundo deu uma freada brusca e a gente ficou tonto.

Para ouvir:

--

--