#9 as pessoas inumeráveis

Carolina Bataier
Diário do fim do mundo
2 min readJun 1, 2020
De Julien Mauve

Eu não sou um número, lembro-me, quando leio o bilhete enviado pela minha mãe, desculpa a letra, estava com pressa para postar, colado na geladeira, junto dos imãs das viagens. Eu, esta pessoa inumerável, gosto de comprar imãs para lembrar dos lugares onde estive.

Não posso ser um número porque existe essa mãe, que escolheu com carinho as máscaras de pano — uma com pequenos flamingos, outra com morangos, outra azul com bolinhas brancas — e colocou nos correios dentro de um saquinho plástico e um bilhete escrito às pressas, sem esquecer do eu te amo, se cuida. Não posso, em um suspiro, sumir da vida dessa mãe.

E, se não está em minhas mãos o poder dessa decisão, ao menos me resta a força para lutar contra a resiliência de me aceitar um número.

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Meu vizinho, um senhor magro e calado, todas as manhãs acorda o neto de oito anos para jogar futebol. Moram lado a lado. Todos os dias, o velho transforma a garagem em campinho. No primeiro fim de semana, esse avô alugou uma cama elástica para o menino pular no quintal e o aniversário não passar sem celebração. Para aquele menino sorridente, esse avô nunca será um número. Ainda que a morte acene com frequência para as pessoas em idade avançada — o fluxo natural da vida — é cruel aceitar que esse senhor vá embora antes de abraçar o menino na formatura de terceiro colegial.

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Na imagem do fotógrafo André Coelho (@a_coelho), um homem de cabelos brancos dá o último beijo na testa daquela mulher. No corpo imóvel sobre a cama, os pezinhos calçados com meias cor de rosa. Nos últimos momentos de vida alguém ainda se importava com que ela não sentisse frio. Um número entre os milhares daquele dia, mas nunca um número para o homem que se despediu com um beijo na testa.

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Vejo as pessoas de máscaras no supermercado e entendo: não nos acostumamos. Resignamo-nos. Existe algo de simbólico em estarmos com as bocas encobertas enquanto o presidente ignora as pequenas atitudes de proteção para, em público, comer cachorro quente. Enquanto gente morre aos montes, ele tira a máscara e mastiga pão com salsicha para afirmar ser, também, gente.

Um dia, recriaremos a economia, fizemos isso tantas vezes. E lembraremos do álcool, das máscaras e das pessoas perdidas.

Para ouvir:

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