A memória permanente de Portrait of a Lady on Fire

Matheus Zanin
depois do ponto
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4 min readMay 15, 2020

Retrato de Uma Jovem em Chamas (Portrait de la jeune fille en feu, 2019) quase não apresenta uma trilha sonora. Só existem duas cenas no filme que utilizam algum artifício sonoro e, quando a música aparece, provoca um misto de sensações tão grande que justifica sua ausência nas demais horas.

Dirigido e escrito por Céline Sciamma, o longa conta a história de Marianne (Noémie Merlant), uma jovem pintora francesa do século 18 que recebe a missão de pintar um retrato de Héloïse (Adèle Haenel), uma mulher que está prestes a se casar contra sua vontade. Por causa disso, ela se recusa a posar para a pintora, e Marianne precisa fazer seu trabalho sem que a outra saiba. Entretanto, com o passar do tempo, as duas acabam acabam se apaixonando.

[©: morningmightcomebyaccident]

Retratar a homossexualidade no século 18 não é tarefa fácil. Sciamma, porém, aborda o tema com delicadeza e sensibilidade únicas, fugindo de prováveis clichês que são esperados em histórias semelhantes. Tais fatores são o que diferenciam o longa de outra aclamada película que carrega a temática LGBTQ+, Me Chame Pelo Seu Nome (Call Me By Your Name, 2017). Diferentemente deste último, em nenhum momento Retrato se torna enfadonho. O crescimento gradual de afeição e amor entre a pintora e sua modelo, sem apelar para uma erotização explícita, prende a atenção de quem está assistindo até o fim da obra.

É possível notar uma grande diferença também com outro filme parecido: Azul É a Cor Mais Quente (La vie d’Adèle, 2013). Dirigido por um homem, o filme abusa de cenas longas de sexo entre as atrizes principais, enquanto em Retrato, o sexo permanece em segundo plano, oculto.

Mesmo assim, é irônico como o azul está igualmente presente no filme de Sciamma. Cada frame é uma pintura, retratando a paisagem de Bretanha, litoral francês, com uma fotografia em tons azulados, que predominam na casa de Héloïse e em todo ambiente externo. A escolha é quase que proposital: símbolo de liberdade, expansão, mas, ao mesmo tempo, frieza e melancolia, a cor azul representa perfeitamente as duas protagonistas e o destino que as acomete.

[©: tumblr]

Mas o roteiro é o destaque principal. A diretora consegue abordar temas universais tais como o amor, o desejo e, principalmente, a sororidade, que se transforma na máxima da história. Temáticas presentes nas mídias atuais, como aborto e liberdade de escolha feminina, também são debatidas pela cineasta através de seu olhar delicado, o que confere à narrativa um aspecto contemporâneo.

Outro enredo importante dentro da história, por exemplo, é o de Sophie (Luàna Bajrami), empregada da casa que decide fazer um aborto. A diretora não perde sua delicadeza nem mesmo durante a cena do procedimento, dotada de uma naturalidade impressionante. Já a questão do casamento arranjado de Héloïse com um homem que ela não conhece reflete a condição da mulher no século 18, submetida a um sistema patriarcal e opressor.

Em outro momento, o trio (Marianne, Héloïse e Sophie) discute sobre o conto mítico de Orfeu, em que o herói vira para trás para ver sua amada, Eurídice, mesmo sabendo que implicaria em sua permanência no submundo de Hades. Para Marianne, Orfeu preferiu ter uma última memória da amante, enquanto para Héloïse, foi a própria Eurídice quem pediu para Orfeu virar.

Tais assuntos são coerentes com o cinema de Céline. A diretora, feminista e lésbica — namorada, inclusive, de Adèle Haenel, que interpreta uma das protagonistas do filme — , é conhecida por seu ativismo dentro e fora das telas. Segundo ela, o longa é um “manifesto sobre o olhar feminino”. E é verdade. Durante todo o filme, a câmera acompanha o ponto de vista das mulheres. Não há praticamente nenhum ator durante as duas horas da película. Quando algum homem aparece, é breve.

Todavia, ao apontar uma visão sobre o que é ser mulher, o roteiro limita tal conceito, uma vez que suas duas personagens principais são brancas e de classe social abastada. Aqui, não desmerecendo os méritos da história, cabe o questionamento de qual “olhar feminino” Céline buscou representar.

Apesar do questionamento, o resultado final é positivo. A diretora já havia atingido notoriedade pelo longa Tomboy (2011), que narra a vida de uma criança transexual. Em Retrato, ela expande o debate com o público sobre homossexualidade e feminismo, obtendo sucesso comprovado: o longa recebeu os prêmios Queer Palm e Melhor Roteiro, em Cannes, além de ser ser indicado a diversos prêmios internacionais.

Retrato de Uma Jovem em Chamas é um dos ápices da temática LGBTQ+ no Cinema, um novo sopro de representatividade para a comunidade que vai muito além de mera fetichização e de erotismo.

É impossível escolher uma única memória do filme quando nós viramos para trás. Orfeu estaria ferrado se assistisse ao longa.

Como eu fiquei depois de assistir ao filme. [©: bereaving]

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Matheus Zanin
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Journalism student at University of São Paulo (ECA — USP).