Pandemia cristalizada

Matheus Zanin
depois do ponto
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3 min readMay 10, 2020

Beth, irmã mais nova da personagem principal do filme, Jo, a questiona se sente saudades de seu amigo de infância. Jo vive em um mundo que está passando por transformações, e sua juventude parece cada vez mais distante. Enquanto o pai está na linha de frente na Guerra de Secessão, a menina vive com suas irmãs e mãe, um refúgio durante o caos que foi o século XIX.

É incrível como nossas percepções mudam de acordo com o momento pelo qual estamos passando. Assisti a Adoráveis Mulheres, de Greta Gerwig, no início de janeiro. Três meses depois, reassistindo em plena quarentena, percebi como determinadas cenas me tocaram ainda mais do que quando as vi pela primeira vez. Adquiriram um simbolismo totalmente novo. As transições entre passado e presente da película — um passado alegre e um presente triste — refletiam a própria condição à qual estamos submetidos.

A personagem principal percebe que aquela época alegre nunca mais retornará. O mundo não era mais o mesmo, e o próprio filme assume um tom azulado, triste. Se, no longa-metragem, o universo da personagem é assolado pela Guerra Civil dos Estados Unidos, no mundo real, ele é assolado por uma pandemia cujas proporções são assustadoras. Em outra cena, por exemplo, a mãe de Jo aparece cuidando de um soldado. Foi inevitável: a imagem de uma enfermeira cuidando de um paciente surgiu na minha cabeça instantaneamente.

No universo de Jo, pelo menos, é permitido sair. Situações que eram tão corriqueiras ontem, parecem distantes hoje. Caminhar pela calçada, aproveitar a luz do Sol, passear no parque, sair com os amigos, sair com o namorado ou sair com a família. Nada disso é possível no mundo real.

Olho pela janela do meu quarto e percebo que, embora tudo esteja diferente, nada mudou, realmente. As árvores estão no mesmo lugar, o céu é azul, alguns carros atravessam a avenida e há cachorros na esquina. Como é possível nada mudar e tudo estar diferente?

Quando não penso na impotência causada pela crise, penso no período anterior a ela e nas oportunidades perdidas, uma imensidão delas.

E, de novo, voltamos para a história de Jo: no meio do filme, a personagem se arrepende de decisões que tomara no passado. Sinto algo parecido. Se eu também soubesse o que estava por vir, teria feito tudo mais. Agora, resta-nos acompanhar os jornais com as últimas atualizações, últimas informações de mortes e de hospitais que atingiram sua capacidade máxima de leitos.

Mesmo assim, é consolador saber que não estamos sozinhos — em mais de um sentido. Para além de toda a população mundial que está em quarentena, há uma vasta variedade de arte para nos sustentar durante momentos de aflição, como o filme de Greta Gerwig. Puro sentimento catártico.

Histórias de personagens que passaram por situações-limite oferecem alento e coragem para atravessar nosso próprio mar em tempestade, assim como os personagens de Adoráveis Mulheres o fizeram. Torço, porém, para que, assim como na ficção de heróis, nós tenhamos nosso final feliz.

“Sinto falta de tudo”, foi a resposta de Jo para a pergunta de Beth. Eu também sinto, Jo.

[©: perioddramasource]

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Matheus Zanin
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Journalism student at University of São Paulo (ECA — USP).