Sobre Ivan Ilitch e Brás Cubas

Matheus Zanin
depois do ponto
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4 min readJul 27, 2020

Textinho que escrevi antes da pandemia.

Dias atrás estava arrumando minha estante de livros, quando me deparei com um livrinho — bem fino, mesmoescondido sob uma pilha. Era um Tolstói. Devido às obrigações da graduação, fazia tempo que eu não parava para ler. Ler no sentido de, por livre e espontânea vontade, escolher uma obra da estante e mergulhar em seu universo.

Aquele livrinho chamou minha atenção. Pois bem: como sabia que passaria a semana no transporte público, decidi colocá-lo em minha mochila para começar a leitura assim que pisasse no metrô. Era um conto, A morte de Ivan Ilitch. Não sabia absolutamente nada sobre seu enredo, apenas o título sugestivo.

As páginas iniciais são despretensiosas. Amigos do falecido Ilitch comentam entre si impressões da morte do funcionário público. Fazia tempo também que havia lido meu último russo — Crime e Castigo, de Dostoiévski — , o que me desabituou aos nomes diferentes dos personagens e suas variações. Prossegui a leitura mesmo assim. Lembro-me de, após fazer baldeação, iniciar a sequência que me apresentaria à vida do falecido.

Tolstói cria uma narrativa típica machadiana (ou, afinal de contas, foi Machado quem criou uma narrativa típica de Tolstói?), apresentando-nos à vida de Ivan Ilitch enquanto membro da alta sociedade russa. O retrato da burguesia é realizado através de exposições, somente — reservemos à Assis a genialidade de dar voz aos mortos. Contudo, assim como em Brás Cubas, o início do conto parte do fim para prosseguir em direção ao começo.

Tolstói me fez pensar muito. [©: highgaarden]

Ilitch teve uma vida boa. Casou-se, teve filhos, recebeu promoções, conviveu entre eventos sociais, fez amigos e trabalhou como funcionário público. Dedicava-se ao máximo em seu emprego, ao ponto de o preferir em detrimento da família. Esta era capaz de o irritar. Havia o emprego, pelo menos, o centro de tudo. Sua função de juiz era agradável.

Eis que ela apareceu. O protagonista passa a sentir uma forte dor próxima da cintura. No início, pensa ser algo momentâneo. Todavia, a dor fica mais intensa, insuportável.

Ilitch consulta-se com vários médicos, mas nenhum parece determinar um diagnóstico com precisão. O tempo passa, e a doença se agrava. Ele não consegue mais trabalhar.

O trabalho. A única coisa que acalmava seus pensamentos, dava sentido à vida. Aos poucos, sente-se enfraquecido, passando dias de repouso em sua cama. Era como se todos ao seu redor escondessem a gravidade da situação, e a alegria alheia passa a irritá-lo.

Prestes a morrer, o personagem busca dar sentido ao que viveu, a fim de encontrar resposta para uma única pergunta. Pergunta que o atormenta e que conduz o conto: Por que a morte?

Havia feito algo de errado? Aproveitara bem seus anos ao lado da família, trabalhando? Quais foram os momentos nos quais se sentira feliz? Vivera apenas de acordo com seu meio? Estaria sendo castigado?

As respostas para tais indagações não são claras. O conto termina com seu último suspiro, após o clímax atingido pelo seu fluxo de consciência: a aceitação da morte. É engraçado, porém, como Brás Cubas parece ter as respostas para as perguntas interiores de Ilitch. O autor-defunto reconhece a inutilidade do viver-se e a própria chacota que fora sua vida. Já o russo prefere não aceitar a verdade.

A leitura de A Morte de Ivan Ilitch em transporte público é curiosa. Tolstói aborda uma temática tão comum, mas, ao mesmo tempo, tão evitada por nós: a morte. Possuímos anseios, desejos, medos e, mesmo assim, é como se o caos do dia-a-dia nos impedissem de refletir. Havia acabado de testemunhar um homem agonizando perante à morte, à dor e ao desconhecido. Ainda, o mundo prosseguia. Próxima estação: Butantã, anunciava a voz no alto falante do vagão.

E se eu terminasse como Ilitch? Perceber que minhas realizações em vida foram previamente moldadas, renegar relações humanas e temer a incerteza do futuro? Estamos caminhando na mesma direção.

Precisaríamos esperar a chegada dela para refletirmos sobre nossas vivências, assim como fora para Ivan Ilitch? O medo da morte só passaria após sua chegada?

Here’s to the ones who d̶r̶e̶a̶m̶ who reflects about their lives. [©: agryppina-cinema]

O conto finaliza com o eco de uma voz sobre o juiz falecido:

— Acabou!

Ela acabara para Ivan Ilitch. Pra gente, apenas começou.

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Matheus Zanin
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Journalism student at University of São Paulo (ECA — USP).