Arto Lindsay: som e ruído nos espaços do mundo
Documentário Arto Lindsay 4D acompanha o músico norte-americano na busca pela experimentação como performer e diálogo com outras artes
O cantor, compositor e produtor Arto Lindsay é um norte-americano que está no mundo. Filho de pais protestantes missionários, chegou ao Brasil aos três anos de idade e ficou até o fim da adolescência em Pernambuco. Quando criança, ouviu pela primeira vez as canções dos Beatles não pelas vozes dos ingleses, mas pelas versões em português das bandas brasileiras da época. Adolescente, espantava-se com o fato de que o mais ousado na música brasileira — a bossa nova, o tropicalismo — difundia-se pelas rádios e pelos festivais da TV, não em guetos artísticos.
O experimental estava à rua e, solto, ainda reverberava nos ouvidos de Arto quando ele retornou à terra natal para estudar literatura na Flórida e depois cair no East Village de Nova Iorque. Lá, ficou amigo de Oiticica e Neville d’Almeida, morou com Waly Salomão, fumou um com João Gilberto e montou o cultuado trio pós-punk DNA em 1977. “Aprendi muito sobre o Brasil quando me mudei para os Estados Unidos e nunca de fato perdi a relação com o país”, diz ele. “Pessoas de Nova Iorque sempre falavam: ‘Ah, você é brasileiro’. Não, não sou. Aqui é meio óbvio que não sou. Mas acho que tenho várias matrizes. Quando a gente aprende um ritmo quando jovem, de alguma forma escuta outros ritmos através dele.”
Os depoimentos pertencem ao filme Arto Lindsay 4D, dirigido pelo carioca André Lavaquial e exibido pela primeira vez, no Brasil, no Festival do Rio, depois de exibição na The Kitchen, em Nova Iorque. Em tempos de pandemia, o documentário está no festival In-Edit Brasil 2020 e pode ser visto em cartaz virtual, e gratuito, pela plataforma Looke. O diretor acompanhou o artista sempre em outro lugar, com outros músicos. Rodando o mundo, fez um instigante registro do Lindsay atual, um performer de gesto consistente, mas maleável, em formações temporárias e muitas vezes de livre improvisação. Não que o documentário seja alheio ao passado do artista, mas se ocupa de discuti-lo ao longo do processo. Caminhando.
No filme, Arto anda pelas ruas — do Japão, Brasil, Estados Unidos, Europa — divertindo-se com a arquitetura, sendo abordado por estudantes de música e discutindo som, cheiro, escultura e performance em galerias. Lavaquial, por sua vez, trata de apreender esses movimentos conforme acontecem, traçando um panorama de pensamento do artista que se reflete em performances com os mais diversos artistas.
Pelo caminho, o norte-americano encontra os mais diversos artistas, como o percussionista Marivaldo Paim (do bloco afro Ilê Aiyê), Jim O’Rourke (famoso pela colaboração com o Sonic Youth e extenso trabalho experimental), o violonista carioca Luís Filipe de Lima, a cantora japonesa Ichiko Aoba e a coreana Anicka Yi, artista conhecida pelas instalações que exploram os sentidos, em especial o do olfato. Também apresenta-se sozinho com a guitarra, em teatro e num take final num galpão no Brooklyn. Os sons são múltiplos e, é claro, diferem muito do que Lindsay fazia nos anos 80, mas a pesquisa ainda finca o pé na experimentação de espaços, dualidades e quebras de expectativa.
O diretor conta que o concebeu a partir de um primeiro registro em 2013, quando o norte-americano tocou com o baterista anglo-norueguês Paal Nilssen-Love na Audio Rebel, casa de shows carioca. Com o tempo e um novo encontro, desta vez para entrevistá-lo para a revista Polivox, intuiu que havia algo ali, um filme que passou a ser pensado formalmente a partir de 2015 e, ao longo do processo, tomou para si a fluidez que a música de Lindsay impõe. “Quando idealizei o documentário, eu imaginava que poderia ter mais controle sobre as cenas e seguir um roteiro mais fechado. Depois da minha primeira viagem com o Arto para Veneza, vi que teria que ser muito mais flexível e jogar com as situações sem muita intervenção”, conta André Lavaquial. “Acho coerente, uma vez que o personagem central do filme é um mestre da improvisação. Meu interesse sempre foi o processo artístico do Arto acontecendo diante da câmera.”
A escolha garante ao filme frescor e perigo, na medida em que o pensamento de Lindsay transita livre e “multidisciplinarmente”, por assim dizer, e as apresentações oscilam de estruturas razoavelmente consolidadas até a absoluta improvisação. Para funcionar, Arto Lindsay 4D teria de partir, e parte, de uma curiosidade viva pelo retratado. “Não entendia como ele conseguia dominar os ritmos brasileiros com tanta desenvoltura”, diz André Lavaquial, lembrando a entrevista para a Polivox. “Naquela ocasião, descobri que ele passou parte da infância e adolescência em Garanhuns, no interior de Pernambuco. Entendi a consciência e o interesse que ele tem sobre o transe no candomblé. Pude entender como ele aplicou isso nas performances de sua lendária banda experimental, o DNA.”
Dualidade
Parece que foi algo daquele, digamos, deslocamento do espaço da intelectualidade presenciado no Brasil que Arto Lindsay buscou no movimento no wave, protagonizado por músicos e não músicos, estudantes de arte e gente que circulava pelo Lower East Side, região suja, violenta e desvalorizada da Nova Iorque de então. Interessados em Duchamp, Burroughs e John Cage, estes jovens faziam ares de avant-garde, mas estavam dispostos a extrapolar as galerias e fazer barulho nos clubes punks dos anos 1980.
Bandas e artistas como Teenage Jesus and the Jerks, Glenn Branca, John Zorn, Mars e James Chance and the Contortions eram enérgicas, minimalistas e, não raro, levavam a desconstrução do rock — a herança blues, a masculinidade centralizadora do guitar hero — ao limite da quase antimúsica. Estavam interessados no incômodo e tinham fascínio pelo acidente. “Vindo para a música de outras áreas, eles tinham uma abordagem um pouco distanciada, o que lhes permitiu lidar com seus instrumentos como objetos estranhos, ferramentas a serem mal utilizadas ou reinventadas”, definiu o crítico Simon Reynolds no livro Rip It Up and Start Again.
“A música no wave era, e é, algo como: ‘Não, estamos realmente destruindo o rock!’. Sua liberdade pura e seu fulgor me fez pensar que eu também poderia fazer isso. Abrangia de tudo, desde filmes a videoarte e música underground”, definiu Kim Gordon na sua autobiografia, lembrando o impacto que aquela geração teve para o Sonic Youth e seus contemporâneos. Sempre menos polida, a artista Lydia Lunch, naquela época no Teenage Jesus, atuava sob a máxima sarcástica de que “a única coisa pior que a guitarra é o guitarrista”.
Se levarmos a cabo essa visão, Arto Lindsay encontra-se no limite do não-músico por excelência, jamais aprendendo os acordes e as afinações convencionais de sua guitarra, na busca de contrastes e dissonâncias. Som, silêncio, ruído. Preferia arranhar o instrumento e usá-lo de modo percussivo, em ataques que iam e vinham sobre base sólida, e algum groove, de bateria e baixo (antes, teclados). Rigidez, maleabilidade. Cantava e urrava letras desconexas ao microfone (inclusive em português), mexendo o corpo em espasmos. Violência, sensualidade.
Neste detalhe, algo une os grupos no wave, tão distintos entre si: não era a música perfeita para dançar, vá lá, mas não estava alheia ao corpo. Para Lindsay, era uma busca de novos estados de consciência. Exaustão física de um corpo em performance de rock. “Pensávamos que era possível olhar o DNA como algo ambicioso, baseado na expressão. Eu estava interessado na possessão dos rituais de candomblé, quando as pessoas ficam tomadas por espíritos, na transformação disso num contexto performático”, diz ele no filme. Para parte do público e a crítica da época, porém, tudo foi lido tão somente como uma variação da agressividade típica do punk.
Finalizada a vida curta do trio, Arto Lindsay montou o duo Ambitious Lovers, voltou a frequentar o Brasil e mergulhou de vez na bossa nova e no tropicalismo, além do funk e soul norte-americano. Antes, também trabalhou com o Lounge Lizards e os Golden Palominos. Continuou sem saber tocar guitarra, mas aprimorou-se como cantor e buscou, na parceria com o exímio músico Peter Scherer no Ambitious Lovers, diversificar os diálogos de dualidades.
Num relance do filme, os tempos se encontram num pequeno auditório em Veneza, onde o norte-americano executa I invoke (“I summon illusions/Especially the flimsy underpinning / Of temporary things/ I invoke, I invoke, I invoke”), canção de 2004 de disco homônimo, com Marivaldo e Luís Filipe. O show termina com a comovente versão de Arto para O mais belo dos belos (“Não me pegue não / Me deixe à vontade / Deixe eu curtir o Ilê/O charme da liberdade”), que faz o público levantar estrangeiro e dançar. Aquele espaço e aquela formação, é claro, está longe do impacto de um carnaval, um bloco afro. Ainda assim, frágil, ela se sustenta dançante. Nos camarins de um show em Veneza, um fã guarda o vinil recém-autografado de A taste of DNA, segundo registro da antiga banda.
Nos discos solo a partir dos anos 90, de O corpo sutil (1995) a Cuidado Madame (2017), vira e mexe ele deixa de tocar sua guitarra e dirige os músicos em suaves ou dançantes canções ao violão, guitarra, percussão e fortes elementos eletrônicos. Ainda que não toque instrumentos, há nítida coerência na criação e produção. Se não ouviu, ouça a extensa compilação Encyclopedia of Arto: são os sons mais diversos, mas tudo é Arto Lindsay.
Espacialização
A constante desse método está também nos atos improvisação em cena que passaram a tomar conta das apresentações de Arto Lindsay — o DNA, ao contrário do que se pode pensar, era resultado de horas e horas de ensaio e execução rígida das estruturas. No documentário de Lavaquial, o não-músico está sempre cercado de grandes instrumentistas. Desse modo, as formações que sobem aos palcos são, por si só, um diálogo de opostos. Nelas, Lindsay repete constantemente o gesto de abraçar a guitarra e se deixar cantar, de modo límpido, claro, bossanovístico.
O que não o impede de, no momento seguinte, atravessar a canção com seu instrumento, de 12 cordas. “As performances do Arto sempre têm um lado suave e um lado agressivo. Nem sempre as pessoas conseguem digerir bem os momentos mais barulhentos. Eu acho que essa dualidade é um dos seus maiores trunfos como artista”, avalia André Lavaquial.
São performances que apontam a pesquisa mais atual e a mais perene de Lindsay. A primeira diz respeito ao modo como o som se dá nos diferentes espaços e como chega até o público. A segunda é o fruto direto do diálogo com as artes plásticas, especialmente em torno do que seria o escultural na música, a partir da tese de que a harmonia tradicional soa como o transparente, enquanto o trabalho com o dissonante almeja ares de concreto, palpável.
A jornada de Arto Lindsay 4D é aberta com o protagonista citando Marcel Duchamp (“Falava da quarta dimensão como sendo o âmbito da arte, além das três dimensões”, diz Lindsay) e retorna ao francês na visita à obra Large Glass, no Museu de Arte da Filadélfia. “Foi muito inspirador vê-lo refletindo diante da obra. Ele tem uma profunda ligação com Duchamp, mas eu acho que a obra da Maria Martins tem uma influência ainda maior sobre ele”, diz o diretor.
Em Maria Martins, Lindsay sintetiza o fascínio que mantém pela arte brasileira (“abstrata e desapegada”, diz) na relação amorosa e artística que a escultora teve com o francês. A brasileira trabalhou seguidamente como modelo para Duchamp, sem deixar de andar pelo mundo com o marido, embaixador, e construir, ela própria, uma sólida carreira na arte. Mais que uma modelo, Martins influenciou diretamente na obra do francês com sua obra, pensamento e insubmissão. Em seu apartamento no Jardim Botânico, Rio de Janeiro, Arto saca um livro da artista e diz: “Ele quer segurar o corpo dela e não consegue. Tanto que ela voltou pro Brasil, ele ficou triste, arrasado, e ela mais ou menos continuou vivendo”. Feita a observação, o músico olha para a câmara, esboça um quase sorriso que revela como ele adora, e sobretudo diverte-se, com a arte brasileira e o modo como a vida aqui se desenrola.