Duas sátiras e nenhum presidente

Produções de IkaRo MaxX e Messias Botnaro propõem versões do presidente da República que, de tão absurdas, soam reais

Jairo Macedo
depoisdosom
6 min readDec 11, 2020

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Tem uma história de que o professor Augusto Fischer, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), lecionou uma disciplina sobre o que chamou de “romances ruins”. Por ruim, ele quer dizer (e tenta explicar aqui) narrativas cuja leitura pode ser mal-recebida, cansativa, tediosa, mas há uma razão para tanto. O exemplo que lhe ocorre é Diário da cadeia, livro escrito por Ricardo Lísias, assinado por “Eduardo Cunha (pseudônimo)” e atualmente retirado de circulação por decisão judicial a favor do Cunha original. No livro, o autor incorpora o ex-deputado em conteúdo e forma, narrando o processo de impeachment de Dilma Rousseff com o estilo sofrível de fala, escrita e argumentação do ex-deputado. Difícil de ler, portanto, mas instigante e provocativo: romance “ruim”.

Recentemente, dois autores se propuseram exercício semelhante, embora não em romances. Quiseram emular o homem que atualmente ocupa a presidência da República brasileira: BozzonarUbu — Sátira distópica hiper-realista em 5 atos e meio, de Hellgina NoArt (pseudônimo do paraibano IkaRo MaxX), lançado pela provokeATIVA, Tuítes póstumos de um herói nacional e A guerra da cloroquina contra o comunavírus chinês, assinados por Messias Botnaro e agora reunidos no volume Minha luta, pela editora capixaba Cousa. A leitura de ambos é sofrível, não pela incompetência dos autores, assinado ou oculto, mas pela própria natureza assimilada, quase copiada, da realidade instalada no país.

Botnaro é um presidente cujo negacionismo quanto à Covid-19 não foi o suficiente para evitar sua própria contaminação. O quadro de insuficiência respiratória avança e ele não resiste. Morto, tem seu corpo canibalizado pelos filhos e apoiadores em grande festa. “Mas a vida continua, não tem que ter histeria”, ele diz, resignado. Não vai ser uma gripezinha que o impedirá de sorrir com escárnio e continuar a luta como defunto-autor, tuitando pelos cotovelos em microtextos, devidamente numerados, nos moldes da rede social. Para além dos livros em questão, aliás, tanto Botnaro quanto BozzonarUbu são ativos no Twitter e Instagram.

2.
Pau-de-arara funciona. Sou favorável à tortura, você sabe disso. O povo é favorável também. Violência se combate com violência. Como diria o nosso patriota Machado de Assis, a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco e alguma vez o cruel. O Brasil vai dar certo.

Do lado de lá, Botnaro revisita o golpe militar do lado dos dele, descrevendo com detalhes — e prazer quase erótico — os seus métodos de tortura favoritos. A certa altura, confessa que até já torturou “uma puta grávida. Comunista!”. Fino.

Além disso, planeja a destruição do marxismo cultural e defende o levante da família brasileira contra a ditadura gay. Ao leitor, qualquer resquício de desenvolvimento narrativo chega aos trancos, sob repetições linguísticas e o uso indiscriminado dos mesmos jargões usados pelos apoiadores e bots por aí. O copia-e-cola argumentativo acima de tudo. A versão, e nunca a informação, acima de todos.

Seja qual for o delírio de que tratam, os tuítes de Botnaro são de uma dureza didática quanto ao pensamento do homem satirizado. Se soam irônicos, a ironia está no fato de que aquele é o pensamento límpido, real, e muitas vezes literal, do presidente da República em exercício.

O que muda é que, influenciado pelos filósofos com quem teve contato no além (não está claro se no céu ou inferno), sobretudo um tal Orvalho de Farfalho (autor do prefácio), o Messias diz que aprendeu a ler. Agora, alterna entre xingamentos em altos tons e o uso de termos como totêmicos, sintaxe, pertinente, intertextualidade e assombro, além de máximas em latim.

17.
Um dia Dr. Tibiriçá saudou-me seco, quase sorriu. Disse que a arte da #tortura é horror como fonte de prazer e beleza. O belamente horrível e o horrivelmente belo são clássicos. As cenas de castigo no Inferno de Dante são responsáveis pelo sucesso da Divina Comédia. Sou dantesco.

Ficou rebuscado esse Messias, ainda que siga com o humor hétero, curto e grosso — “no bom sentido”, adianta-se. Depois de morto, alcançou a filosofia. Antes, confessa, “sempre que abria a boca, saía merda”.

O Nada
Em BozzonarUbu, a leitura fica ainda mais indigesta pela multiplicidade de vozes. Mais de uma dezena de personagens conduzem a ascensão do então candidato em direção à presidência, com ajuda das forças armadas, mídia, mercado e igreja.

Assim como em Botnaro, não há nomes reais no texto, mas Hellgina apresenta Pablo Guedes, Armilton Mourrão, Pastor Malacraia, Juiz Brejo Morro, os três filhos e o próprio BozzonarUbu, com seus longos monólogos ególatras. Tudo é amplamente satírico e escatológico na peça.

Esses vermelhos têm que vazar, tá entendendo? Vão pra praia tomar Itubaína! E se for defender essa cambada de vagabundo vou dizer a todo mundo que você mama na mamadeira de piroca. Éééé. Na mamadeira de madeira! (…) Vocês vão ver. (faz careta pro público como se tivesse 5 anos de idade). Vão ver só.

O culto à morte, à mentira e ao personalismo movimenta os impulsos dos personagens em direção à ruína da política de dentro para fora. O texto enfileira discursos que, de tão cruéis e lunáticos, terminam por soar, pasmem, verossimilhantes. O grotesco reina, rebaixando tudo a um ponto no qual qualquer afirmação é viável e a difamação, um direito de expressão.

(…) se estou aqui é porque o meu anticoração é de vocês. E nosso lema: é Plazil acima de tudo, Deu$ acima de poucos. Nas cores verde-amarelo… e azul e branco. Nós temos como vencer. Nós “diferentes”, nós somos a maioria e nós chegaremos lá com a desgraça dos Plazileiros.

A articulação política de BozzonarUbu parece um imenso meme feito nas coxas, pobre esteticamente e sem qualquer pudor em elevar as mentiras ao nível do surreal. Em uma espécie de interlúdio, por exemplo, os aplicativos WhatsApp, Telegram, MSN e ICQ travam um diálogo de conflito de gerações e interesses. Faz sentido.

E por que não? Difícil tarefa a de ser caricatural perante uma realidade que já se impõe assim. A luta de BozzonarUbu e Botnaro, assim como a do personagem satirizado, é pela instalação de um discurso delirante no poder, que hiperboliza inimigos imaginários e dicotomias. A pandemia vira um grande plano comunista chinês, a oposição da esquerda é coesa e atuante, e as pautas identitárias buscam privilégios e não direitos. O vacuidade completa de sentido, mas com conseqüências densas e concretas. Um Nada, diria o já citado Ricardo Lísias.

A recorrência de Lísias neste texto é apenas coincidência, não repare. Mas é que no Diário da catástrofe brasileira, livro do autor lançado neste ano, ele tenta desenvolver o que entende por Nada, conceito que, segundo ele, rege os modos do governo atual. Arrisco uma aproximação: a insistência no absurdo, bem como a pró-atividade incansável dos seus eleitores em propagá-lo, “anulou o antigo campo político — que se compunha de debates na TV, entrevistas, comícios e eventos de rua — em troca de outro mais convenientemente virtual, em que afinal de contas nada acontece”, escreve Lísias. O incidente da facada durante a campanha, por sua vez, torna o Nada palpável para quem acredita naquele homem. “O Nada está aqui”, conclui. As sátiras em Botnaro e Ikaro explicitam muito bem os métodos para chegar até ele.

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